O País de Mossoró
Diante de rostos e
olhares atônitos, Jerônimo Rosado, em um transe
profético, acaricia seu pequeno filho de 8 anos de idade e diz: “O
que eu não fizer por Mossoró, um filho meu fará”.
A população o aplaude em êxtase. O velho Rosado tinha razão.
O menino que estava em seu colo, Dix-Sept, iria se tornar, anos mais tarde,
um mito da cidade. E seu irmão mais novo, Vingt-un, o fundador de um
país. Um país situado no sertão potiguar, mergulhado em
um calor intenso e em uma paisagem quase desértica. Um país onde
um cangaceiro se torna santo e a água quente jorra naturalmente pelas
torneiras. Um país onde os jovens usam garfo e faca para comer os sanduíches
do “Sebosão”. E as ruas e as praças mais importantes
são nomeadas com os números 17, 18, 19, 20 e 21, sempre em francês.
Um país em que enxames de morcego sobrevoam as ruas sem que ninguém
estranhe. Um país que é responsável por 95% da produção
salineira do Brasil. Um país em que tradições, mitos,
festas, história, política, economia, cultura foram fomentadas
por livros. Um país que nasceu de uma coleção, a Mossoroense.
A Coleção Mossoroense e seu patriarca, Vingt-un Rosado, criaram
o País de Mossoró. Com ele, surgiu uma identidade cultural vigorosa,
incomum nas cidades do interior brasileiro. A coleção fez de
Mossoró um país por onde, por temor à sua padroeira, Santa
Luzia, até o temido Lampião, se diz, teve medo de passar. País
que construiu outra lenda: a de Dix-Sept Rosado, irmão mais velho de
Vingt-un. Dix-Sept foi prefeito de Mossoró entre 1948 e 1950. Chegou,
por seis meses, antes do acidente aéreo que o matou, em 12 de julho
de 1951, a ser governador do Rio Grande do Norte. Mais que prefeito e governador,
Dix-Sept foi uma lenda de um país construído por meio dos livros.
Cangaceiro
Mossoró tem 250 mil habitantes, que sempre relatam, com entusiasmo,
a história do cangaceiro Jararaca. Empolgado, o mossoroense falará da
coragem do grupo de conterrâneos que, em 1927, enfrentou Lampião
e o expulsou de seu país. Depois, quando o sangue lhe subir, o mossoroense
lembrará a façanha dos heróis que capturaram o temido
Jararaca, braço direito do temido cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva.
Jararaca foi enterrado vivo. A morte cruel do cangaceiro provocou uma inesperada
comoção popular. Na tumba, aconteceu o milagre. Puft! O homem,
ruim que nem um cão, de repente se tornou santo. No Dia de Finados,
adivinhem qual é a sepultura mais visitada no cemitério público
de Mossoró? Que outra, senão a do antigo inimigo, hoje venerado
herói?
A história da resistência ao bando de Lampião é real
e está documentada. A Coleção Mossoroense foi a primeira
a publicá-la. Já a história de Jararaca, apesar de todos
no País de Mossoró a relatarem como verdadeira, é apenas
uma lenda. O que se sabe é que, logo após a morte repentina do
cangaceiro Jararaca, um policial deu uma entrevista afirmando que o enterrara
vivo. Não há registros que comprovem seu relato. Mesmo assim,
o mossoroense repetirá, até mesmo, as últimas palavras
de Jararaca, um doloroso pedido de perdão. E vai garantir que sua tumba,
ainda hoje, é milagrosa.
Revolta
Mossoró é um país em que as mulheres são maioria.
E são bravas. No fim do século XIX, em plena Guerra do Paraguai,
as mães mossoroenses, indignadas com a convocação de seus
filhos para a morte nos campos de batalha, foram às ruas protestar.
Reunidas em frente à Junta Militar, em um ato de coragem, elas queimaram
os documentos de convocação de seus filhos. Acuados, os militares
cancelaram a obrigatoriedade de alistamento no município. O episódio
ficou conhecido como o Motim das Mulheres e é recordado até hoje,
com orgulho, pelas mais de 120 mil mulheres mossoroenses. Com a mesma altivez
elas comemoram outro fato histórico. Ali, em pleno sertão nordestino,
no ano de 1928, Celina Guimarães foi a primeira mulher a votar no continente.
O primeiro voto feminino,
a abolição dos escravos (que, em Mossoró,
aconteceu cinco anos antes da Lei Áurea), a resistência ao bando
de Lampião e o Motim das Mulheres são lembrados, todos os anos,
no Auto da Liberdade, um grande espetáculo ao ar livre realizado, sempre,
no final de setembro. Mesmo mês em que os negros mossoroenses ganharam
antecipadamente a liberdade. São milhares de atores, figurantes, toneladas
de equipamentos, palcos gigantescos e investimentos milionários. E pum!
Sempre encantados com os fatos grandiosos, os mossoroenses já pensaram,
até, em inscrever sua festa no Guinness Book. Ele seria, dizem os mossoroenses,
o maior espetáculo ao ar livre do planeta. No mês de junho, a
história da resistência merece sua própria encenação:
o espetáculo Chuva de Balas no País de Mossoró, que é encenado
no Mossoró Cidade Junina, uma das festas mais importantes da cidade.
Dados
Mossoró é um país com 2.110,27 quilômetros quadrados.
A economia se baseia, principalmente, em petróleo e sal. A maior parte
da população é urbana. O centro comercial (e orgulho)
da cidade é o West Shopping, área de 80 mil metros quadrados,
com 140 lojas, fundado em 2007. No país ainda não há cinema,
mas já existe um cineclube, importado de Natal, que opera de forma precária,
sem tela e projetor próprios, nos salões da biblioteca municipal.
Em compensação, o país tem dois teatros: o Lauro Monte
Filho, habitado por uma lendária população de morcegos,
e o Dix-Huit Rosado, maior teatro do Rio Grande do Norte.
Em Mossoró, mesmo no inverno faz muito calor. No outono faz calor,
na primavera faz calor, no verão faz calor. A média de temperatura
anual é de 30 graus Celsius e o vento é quente, mesmo à noite,
mesmo quando a temperatura diminui um pouco, mesmo quando chove. Há três
anos, Mossoró tem um aeroporto, que é, porém, inoperante
para vôos comerciais. Para chegar a Mossoró, é preciso
viajar de ônibus e atravessar quase todo o sertão potiguar, em
veículos malconservados e estradas precárias. Na cidade, o transporte é a
motocicleta. Ou melhor, o moto-táxi. Os moto-taxistas, geralmente homens
altos, morenos e bigodudos, caçam seus fregueses nas ruas, garantindo
que oferecem o transporte mais seguro e, o que é melhor, o de preço
mais baixo.
Universidades
Duas universidades
públicas funcionam no País de Mossoró,
além de uma particular e um punhado de faculdades privadas. As ruas
estão cheias de estudantes de agronomia, geologia, engenharia ambiental,
ciências da religião, letras, administração, biologia,
radialismo, publicidade, jornalismo. Sempre ansiosos para as férias,
que lhes permitirão retornar a Natal ou se divertir nas festas da cidade.
Eles moram em residências universitárias ou então em apartamentos
alugados, geralmente no centro da cidade, e pagam R$ 12,00 por uma carteira
de estudante. Fundado em 1872, O Mossoroense é o quarto jornal mais
antigo do Brasil. Ele disputa leitores com três outros jornais, bem mais
jovens: o Jornal de Fato, o Correio da Tarde e a Gazeta do Oeste. A cidade
tem uma rede de televisão local que é, ao mesmo tempo, um canal
por assinatura: a TCM. Lá funcionam, ainda, várias retransmissoras,
além de um punhado de estações de rádio.
No terreno de uma antiga
fazenda, a Santa Luzia, religiosos e comerciantes fundaram, em 1852, a vila
de Mossoró. Onze anos depois, a vila se tornou
cidade. Só quase um século depois surgiu o País de Mossoró,
fruto da obsessão de Vingt-un Rosado pelos livros.
O País
A construção mítica do País de Mossoró começou,
ainda na década de 1950, graças ao historiador Luís da
Câmara Cascudo. Inspirando-se em um colega francês, o célebre
historiador Fernand Braudel, para quem a cidade francesa de Lyon se assemelhava
a um país, Cascudo usou, pela primeira vez, a expressão País
de Mossoró. Acreditava Cascudo que, por ser uma referência econômica
no sertão potiguar, Mossoró merecia esse título. A idéia
de cidade-país foi amplamente utilizada por Vingt-Un Rosado em sua Coleção
Mossoroense. No catálogo da editora, existem livros como Roteiros do
País de Mossoró e Os Trabalhadores do Sangue no País de
Mossoró, cujos títulos reafirmam o mito.
Há quem diga, porém, que a construção imaginária
do País de Mossoró seja fruto, antes de tudo, de obstinações
e contingências políticas. O professor aposentado José Lacerda
Alves Felipe, do departamento de geografia da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN), é um dos que sustentam essa tese. Ele a defende em “A
(Re) Invenção do Lugar – Os Rosados e o País de
Mossoró”, tese de doutorado que apresentou, em 2000, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seu trabalho, Felipe afirma que a criação
imagética do País de Mossoró foi uma das formas encontradas
pela família Rosado para dominar politicamente a região. Baseia
seus argumentos no estudo dos “heróis civilizadores” e na
criação de mitos que contribuíram para o fortalecimento
da identidade cultural do mossoroense.
No entender de Felipe,
dentro do clã dos Rosado, cada filho exercia
determinado papel político. Nessa divisão de tarefas, a Vingt-un
caberia exercer a dominação por meio da identidade cultural.
Criar uma identidade cultural mossoroense, própria e singular. Mitificar
a família Rosado e sua história. Dar vida a heróis e ídolos
que a sustentassem. Enfim: criar um país. Um país no qual os
Rosado pudessem se perpetuar politicamente e onde seus antepassados fossem
cultuados como heróis. Nitroglicerina pura! Se isso é verdade
ou não, não se sabe. Mas que a família Rosado é muito
estranha, ah, é sim.
Fonte: Coleção Mossoroense
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