sexta-feira, 22 de março de 2013

HISTÓRIA

O País de Mossoró

Diante de rostos e olhares atônitos, Jerônimo Rosado, em um transe profético, acaricia seu pequeno filho de 8 anos de idade e diz: “O que eu não fizer por Mossoró, um filho meu fará”. A população o aplaude em êxtase. O velho Rosado tinha razão. O menino que estava em seu colo, Dix-Sept, iria se tornar, anos mais tarde, um mito da cidade. E seu irmão mais novo, Vingt-un, o fundador de um país. Um país situado no sertão potiguar, mergulhado em um calor intenso e em uma paisagem quase desértica. Um país onde um cangaceiro se torna santo e a água quente jorra naturalmente pelas torneiras. Um país onde os jovens usam garfo e faca para comer os sanduíches do “Sebosão”. E as ruas e as praças mais importantes são nomeadas com os números 17, 18, 19, 20 e 21, sempre em francês. Um país em que enxames de morcego sobrevoam as ruas sem que ninguém estranhe. Um país que é responsável por 95% da produção salineira do Brasil. Um país em que tradições, mitos, festas, história, política, economia, cultura foram fomentadas por livros. Um país que nasceu de uma coleção, a Mossoroense.
A Coleção Mossoroense e seu patriarca, Vingt-un Rosado, criaram o País de Mossoró. Com ele, surgiu uma identidade cultural vigorosa, incomum nas cidades do interior brasileiro. A coleção fez de Mossoró um país por onde, por temor à sua padroeira, Santa Luzia, até o temido Lampião, se diz, teve medo de passar. País que construiu outra lenda: a de Dix-Sept Rosado, irmão mais velho de Vingt-un. Dix-Sept foi prefeito de Mossoró entre 1948 e 1950. Chegou, por seis meses, antes do acidente aéreo que o matou, em 12 de julho de 1951, a ser governador do Rio Grande do Norte. Mais que prefeito e governador, Dix-Sept foi uma lenda de um país construído por meio dos livros.

Cangaceiro
Mossoró tem 250 mil habitantes, que sempre relatam, com entusiasmo, a história do cangaceiro Jararaca. Empolgado, o mossoroense falará da coragem do grupo de conterrâneos que, em 1927, enfrentou Lampião e o expulsou de seu país. Depois, quando o sangue lhe subir, o mossoroense lembrará a façanha dos heróis que capturaram o temido Jararaca, braço direito do temido cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva. Jararaca foi enterrado vivo. A morte cruel do cangaceiro provocou uma inesperada comoção popular. Na tumba, aconteceu o milagre. Puft! O homem, ruim que nem um cão, de repente se tornou santo. No Dia de Finados, adivinhem qual é a sepultura mais visitada no cemitério público de Mossoró? Que outra, senão a do antigo inimigo, hoje venerado herói?
A história da resistência ao bando de Lampião é real e está documentada. A Coleção Mossoroense foi a primeira a publicá-la. Já a história de Jararaca, apesar de todos no País de Mossoró a relatarem como verdadeira, é apenas uma lenda. O que se sabe é que, logo após a morte repentina do cangaceiro Jararaca, um policial deu uma entrevista afirmando que o enterrara vivo. Não há registros que comprovem seu relato. Mesmo assim, o mossoroense repetirá, até mesmo, as últimas palavras de Jararaca, um doloroso pedido de perdão. E vai garantir que sua tumba, ainda hoje, é milagrosa.

Revolta
Mossoró é um país em que as mulheres são maioria. E são bravas. No fim do século XIX, em plena Guerra do Paraguai, as mães mossoroenses, indignadas com a convocação de seus filhos para a morte nos campos de batalha, foram às ruas protestar. Reunidas em frente à Junta Militar, em um ato de coragem, elas queimaram os documentos de convocação de seus filhos. Acuados, os militares cancelaram a obrigatoriedade de alistamento no município. O episódio ficou conhecido como o Motim das Mulheres e é recordado até hoje, com orgulho, pelas mais de 120 mil mulheres mossoroenses. Com a mesma altivez elas comemoram outro fato histórico. Ali, em pleno sertão nordestino, no ano de 1928, Celina Guimarães foi a primeira mulher a votar no continente.
O primeiro voto feminino, a abolição dos escravos (que, em Mossoró, aconteceu cinco anos antes da Lei Áurea), a resistência ao bando de Lampião e o Motim das Mulheres são lembrados, todos os anos, no Auto da Liberdade, um grande espetáculo ao ar livre realizado, sempre, no final de setembro. Mesmo mês em que os negros mossoroenses ganharam antecipadamente a liberdade. São milhares de atores, figurantes, toneladas de equipamentos, palcos gigantescos e investimentos milionários. E pum! Sempre encantados com os fatos grandiosos, os mossoroenses já pensaram, até, em inscrever sua festa no Guinness Book. Ele seria, dizem os mossoroenses, o maior espetáculo ao ar livre do planeta. No mês de junho, a história da resistência merece sua própria encenação: o espetáculo Chuva de Balas no País de Mossoró, que é encenado no Mossoró Cidade Junina, uma das festas mais importantes da cidade.

Dados
Mossoró é um país com 2.110,27 quilômetros quadrados. A economia se baseia, principalmente, em petróleo e sal. A maior parte da população é urbana. O centro comercial (e orgulho) da cidade é o West Shopping, área de 80 mil metros quadrados, com 140 lojas, fundado em 2007. No país ainda não há cinema, mas já existe um cineclube, importado de Natal, que opera de forma precária, sem tela e projetor próprios, nos salões da biblioteca municipal. Em compensação, o país tem dois teatros: o Lauro Monte Filho, habitado por uma lendária população de morcegos, e o Dix-Huit Rosado, maior teatro do Rio Grande do Norte.
Em Mossoró, mesmo no inverno faz muito calor. No outono faz calor, na primavera faz calor, no verão faz calor. A média de temperatura anual é de 30 graus Celsius e o vento é quente, mesmo à noite, mesmo quando a temperatura diminui um pouco, mesmo quando chove. Há três anos, Mossoró tem um aeroporto, que é, porém, inoperante para vôos comerciais. Para chegar a Mossoró, é preciso viajar de ônibus e atravessar quase todo o sertão potiguar, em veículos malconservados e estradas precárias. Na cidade, o transporte é a motocicleta. Ou melhor, o moto-táxi. Os moto-taxistas, geralmente homens altos, morenos e bigodudos, caçam seus fregueses nas ruas, garantindo que oferecem o transporte mais seguro e, o que é melhor, o de preço mais baixo.

Universidades
Duas universidades públicas funcionam no País de Mossoró, além de uma particular e um punhado de faculdades privadas. As ruas estão cheias de estudantes de agronomia, geologia, engenharia ambiental, ciências da religião, letras, administração, biologia, radialismo, publicidade, jornalismo. Sempre ansiosos para as férias, que lhes permitirão retornar a Natal ou se divertir nas festas da cidade. Eles moram em residências universitárias ou então em apartamentos alugados, geralmente no centro da cidade, e pagam R$ 12,00 por uma carteira de estudante. Fundado em 1872, O Mossoroense é o quarto jornal mais antigo do Brasil. Ele disputa leitores com três outros jornais, bem mais jovens: o Jornal de Fato, o Correio da Tarde e a Gazeta do Oeste. A cidade tem uma rede de televisão local que é, ao mesmo tempo, um canal por assinatura: a TCM. Lá funcionam, ainda, várias retransmissoras, além de um punhado de estações de rádio.
No terreno de uma antiga fazenda, a Santa Luzia, religiosos e comerciantes fundaram, em 1852, a vila de Mossoró. Onze anos depois, a vila se tornou cidade. Só quase um século depois surgiu o País de Mossoró, fruto da obsessão de Vingt-un Rosado pelos livros.

O País
A construção mítica do País de Mossoró começou, ainda na década de 1950, graças ao historiador Luís da Câmara Cascudo. Inspirando-se em um colega francês, o célebre historiador Fernand Braudel, para quem a cidade francesa de Lyon se assemelhava a um país, Cascudo usou, pela primeira vez, a expressão País de Mossoró. Acreditava Cascudo que, por ser uma referência econômica no sertão potiguar, Mossoró merecia esse título. A idéia de cidade-país foi amplamente utilizada por Vingt-Un Rosado em sua Coleção Mossoroense. No catálogo da editora, existem livros como Roteiros do País de Mossoró e Os Trabalhadores do Sangue no País de Mossoró, cujos títulos reafirmam o mito.
Há quem diga, porém, que a construção imaginária do País de Mossoró seja fruto, antes de tudo, de obstinações e contingências políticas. O professor aposentado José Lacerda Alves Felipe, do departamento de geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é um dos que sustentam essa tese. Ele a defende em “A (Re) Invenção do Lugar – Os Rosados e o País de Mossoró”, tese de doutorado que apresentou, em 2000, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seu trabalho, Felipe afirma que a criação imagética do País de Mossoró foi uma das formas encontradas pela família Rosado para dominar politicamente a região. Baseia seus argumentos no estudo dos “heróis civilizadores” e na criação de mitos que contribuíram para o fortalecimento da identidade cultural do mossoroense.
No entender de Felipe, dentro do clã dos Rosado, cada filho exercia determinado papel político. Nessa divisão de tarefas, a Vingt-un caberia exercer a dominação por meio da identidade cultural. Criar uma identidade cultural mossoroense, própria e singular. Mitificar a família Rosado e sua história. Dar vida a heróis e ídolos que a sustentassem. Enfim: criar um país. Um país no qual os Rosado pudessem se perpetuar politicamente e onde seus antepassados fossem cultuados como heróis. Nitroglicerina pura! Se isso é verdade ou não, não se sabe. Mas que a família Rosado é muito estranha, ah, é sim.

Fonte: Coleção Mossoroense

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