Dias de luta
“Que dia”, pensou consigo naquele fim de tarde.
- Seu Carlos, meu café tá perto?
Sentada, olhando os carros passarem pela janela da cafeteria, Júlia pensava sobre tudo o que estava acontecendo em sua vida. De arma e distintivo na cintura, esperava pelo seu café de toda terça-feira, feito com apreço pelo seu Carlos, simpático senhor cujo café ela frequentava há anos, desde que suas rotinas e plantões policiais haviam começado. Era uma espécie de ritual: sempre que exausta após um dia de trabalho, seja pelas barbaridades cometidas pelos habitantes do mundo do crime ou pelas falcatruas e corrupções praticadas por homens de colarinho branco e colegas de trabalho, vinha ao simpático café e sentava em alguma mesa próxima à janela, de onde mirava, sozinha, os carros e transeuntes indo para lá e para cá, em um ritmo cotidiano que, de certa forma, a deixava relaxada; pensativa.
De sua janela, enxergava toda aquela realidade como um astronauta enxerga a Terra de sua nave: sentia-se deslocada daquele mundo; estranha; estrangeira. Considerava-se uma intrusa - só não sabia de onde tinha vindo. Olhando aqueles seres de outro planeta, tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes, indagava-se sobre quais seriam os medos, as alegrias, as memórias e histórias de vida que guiavam aquelas pessoas. Ao longe, um casal com roupas de verão coloridas e um mapa na mão conversavam entre si. “Estão perdidos?”. “Vai ver eu é que estou perdida?”, pensou rindo consigo.
“Esse jogo foi feito para quem sabe jogar”, dizia-lhe, na manhã daquele mesmo dia, com um sorriso malicioso, o advogado de um empresário rico e bem conhecido da alta sociedade suspeito de uma série de crimes ligados à máfia local. “E você é apenas uma peça nesse tabuleiro inteiro, minha querida”. Ela não soube o que dizer. Ficara parada, vendo todo o esforço que ela e sua equipe tiveram nos últimos meses saindo pela porta, de mãos livres, impune. A felicidade e o brilho de desdém daquele advogado e seu cliente tinham lhe doído mais do que uma bala cruzando seu peito. “Preciso de um café”. “Preciso ver o mar”.
Na verdade, conhecia bem as regras do jogo. Sabia de toda pressão que sofreria quando decidira ser policial. O que mais lhe dava temores, no entanto, era como faria para separar sua vida profissional de sua vida emocional, de seu lar. Sempre achara que, no fundo, esta sim, em relação àquela, seria a maior batalha que travaria. E tinha a ciência de que, no final das contas, no cair das cortinas, teria que contar consigo mesma. “Sozinha e só”.
Sua família havia se mudado para outro estado alguns anos atrás, devido à promoção de seu pai em uma empresa do ramo de petróleo. Morava sozinha. Solteira, nunca havia se casado. Tivera um ou dois relacionamentos duradouros que se esvaíram com o tempo, desgastados emocionalmente ou sexualmente. Sentia-se sozinha boa parte do tempo, mas já havia se acostumado a isto. Driblava a solidão com alguns bons amigos, um cachorro, os bons livros de sua estante ou um bom filme. Às vezes, envolvia-se com algum rapaz, mas eram coisas passageiras, comuns a qualquer mulher solteira e bonita.
Era belíssima. Despertava a atenção de qualquer homem por onde passasse. Dona de um belo corpo, seu sorriso e olhos castanhos fascinavam a quem quer que os cruzassem. No entanto, nenhum deles lhe convencia de que poderia preencher aquilo que desejava para os próximos anos de sua vida. “Um bom livro e um bom cachorro bastam no momento”, disse um dia sorrindo para uma de suas amigas.
Ainda no café do seu Carlos, quando estava prestas a pagar a conta, ouvira os gritos de uma mulher. Ao correr até a porta de saída, deparou-se com um homem armado, chorando e tremendo-se, com a arma apontada para uma mulher e uma criança. “Se ele não ficar comigo, não vai ficar com ninguém. Ninguém!”, gritava ele.
“Polícia! Abaixe a arma. Agora!”.
O homem continuava com a arma apontada. A mulher, abraçada ao garoto, chorava de olhos fechados pedindo que ele não os machucasse. “É o nosso filho, por favor!”. O garoto, em estado de choque, nada fazia a não ser olhar para o chão e para a mãe.
“Abaixe a arma, agora! Você não precisa fazer isso!”, dizia Júlia, com um tom de voz mais calmo, à medida que se aproximava lentamente do homem. Olhando-o mais de perto, ela pôde enxergar seus olhos extremamente vermelhos e sua pupila dilatada, bem como a expressão facial de um homem doente em um acesso de loucura. “Ele vai atirar”, pensou ela.
De repente, vendo Júlia se aproximar, o homem apontou a arma para ela.
Um tiro. Dois tiros.
Caíra no chão soltando a arma, de joelhos e rosto.
Júlia havia disparado contra ele. Dezenas de curiosos que estavam a metros de distância corriam aos gritos em direção à frente da cafeteria. A mulher e seu filho, abraçados, choravam bastante. Em seguida, ela tentou acalmá-los. Duas viaturas da polícia chegavam ao local. Dezenas de curiosos, uma família destruída, um corpo.
Após resolver todas as questões do incidente que ocorrera naquele fim de tarde, voltara para casa, exausta. Ao abrir a porta de seu apartamento, recebeu as boas vindas do seu cachorro, fiel amigo. Uma correria e um balançar de rabo indicavam a felicidade da presença dela. Fez um carinho nele e cócegas em sua barriga. “Um banho, é tudo o que eu preciso”. “Uma boa música e um bom vinho”.
Minutos depois, na varanda de seu apartamento, desfrutava da música suave e do céu estrelado. Lá embaixo, um casal caminhava com um carrinho de bebê. Pareciam felizes; contentes. Vez ou outra tiravam uma foto e se beijavam, leves, despreocupados. Do outro lado da rua, um grupo de senhoras conversava na calçada, olhando, também, a cena daquele curioso casal.
“Hoje salvei uma mãe e um filho”, pensara. Aos seus pés, seu cachorro se esfregava em sua perna como quem pede carinho e atenção.
Sentindo o vento frio da noite, Júlia sorriu, olhou para o céu estrelado e fechou os olhos.
“E amanhã, quem vai me salvar?”.
Autor: Airton Neto
Fonte: Recanto das Letras
Foto ilustrativa