ROQUE
Só lhe sei o nome de batismo. Roque.*
Na hagiologia, São Roque é advogado das pestes e a ele Vieira dedicou quatro sermões. Neles, refere que, antes de atingir vinte anos, a Roque lhe faltaram os pais que lhe deixaram de herança o estado de Mompilher de que eram senhores. Roque, falo ainda do Santo, embora muito jovem, entregou os bens a um tio e partiu, pobre e peregrino para a Itália, para visitar os lugares santos. À época, em guerras Itália e França, Roque foi ferido pelos italianos e serviu aos enfermos nos hospitais; quando do retorno à sua terra, nem seu tio, nem algum de seus parentes o reconheceu e, então, desconhecido de todos, foi preso como espiã e, enquanto esteve na prisão, curava enfermos, e, narra Vieira em um sermão que “Saiu a imagem, que é a sombra de São Roque, pelas ruas de Constância, e sem se tirarem os enfermos às ruas, saravam nas casas, saravam nas enfermarias, saravam nos hospitais, enfim, em qualquer parte da cidade, por remota, por distante, por oculta que fosse, saravam todos.” (1659).
Lembrar o santo de que trazia o nome parece ser oportuno, porque Roque me ficou na lembrança, junto à história de sua doença. Roque era cego; mas, não de nascença. A respeito de seu mal, as pessoas da cidade contavam que ele fora picado de cobra e, depois de mezinhas e remédios outros, longos dias, viera a sobreviver à peçonha, com a perda da visão.
Andava por toda a cidade, sem levar consigo bastão, conhecendo cada canto e cada dificuldade pelo aguçamento dos demais sentidos. Alto, preto, elegante, estava sempre trajado com calça e camisa de mangas compridas, bem passadas. Atravessava a praça, caminhando com passo firme, os braços em ângulo reto, cotovelos juntos ao corpo e se dirigia para a Igreja Matriz. Ali, permanecia junto ao altar do Senhor Morto, assistindo à missa dominical.
Tem imagens que se impregnam na retina. Por serem fortes, por serem repetidas, por suscitarem curiosidade. Roque constitui uma dessas figuras no calidoscópio da paisagem humana do Assu. Era habitual vê-lo passar pelas ruas, vê-lo na Igreja, ao lado da capela lateral. Mas, em torno as particularidades de sua pequena biografia permitiam que se formassem expectativas, estórias e, até mesmo, receios. O homem cego que conhecia os caminhos e as ruas de sua cidade, que, na escuridão das coisas optava por se vestir cotidianamente de branco, que vencera a luta contra o veneno da cobra. Saíra atingido, mas não vencido.
Talvez por isso, em verdadeira premonição, tenha recebido na pia batismal o nome de Roque. Para lutar, se não contra a peste, contra a doença. Para receber, se não o alento de um cão piedoso a trazer-lhe pão da mesa de seu senhor, as moedas com que seus conterrâneos provinham às esmolas de sua subsistência. Para ser um vulto que passa na memória, humilde, simples, quase anônimo, como Roque retornando a Mompilher passou o resto da vida, necessitado e desconhecido.
Figuras, como essas, que recortam ao longo das ruas, que, sob o forte sol alongam sua sombra nas pedras da cidade, nelas se incrustam e se tornam atemporais, dentro do coletivo. Na cidade sertaneja, o embate do homem picado pela cobra guarda um sinal do cotidiano, da luta contra as dificuldades e as limitações impostas pela natureza.
Do livro: Daqui eu vejo o Cata-vento – Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro – FASA GRÁFICA – Recife – Recife/PE.
*Roque Teodósio da Silva – salvo engano, era esse o nome bordado, em ponto de cruz, no bolso da camisa branca, alvíssima, de Roque. (grifo nosso).
- Foto: Blog do Fernando Caldas.