A CASA DE PEDRO AMORIM
Por: Maria do Perpétuo Socorro
Wanderley de Castro.
Na antiga rua das Flores, o vazio.
Pra mim, como em velho álbum de retratos, está uma página sem imagens, apenas
cantoneiras vazias. Na rua quieta, mais quieta ainda, o silêncio e espaço vazio
se escancara, fauces tenebrosas a engolir a história. No lugar do nada de hoje,
antigamente, dirão pouco a pouco os passantes, se erguia a casa de dr. Pedro Amorim.
Nela vi a desfiguração de muitos anos, quando entrei em suas salas, pela última
vez, em julho de 2003. O piso de mosaicos em composição geométrica de vermelho
e amarelo estava encardido e coberto de poeira. Dia após dia, no abandono e na
solidão, o pó foi se depositando sobre cada pedra, sobre as fechaduras, sobre
as portas, sobre os degraus da escada, impedindo o acesso ao pavimento
superior.
De costas para a casa, um grupo
tirou um retrato. Para lembrar daquele dia, ou para lembrar daquela casa? Casa
que brilhou em lustres derramados de pingentes, no piso encerado com cera de
carnaúba, os largos móveis, os marquesões na espaçosa sala de estar. Casa onde
se hospedaram, onde se banquetearam e brindaram por muitos e sucessivos anos,
numerosos políticos ligados à linha do chefe político do Vale do Assu, dr.
Pedro Amorim. Era uma casa nobre, um palacete, com primeiro andar e belas
varandas.
Ouvi histórias que se passaram ali:
dr. Hélio Santiago me contou quando ali esteve durante a campanha de Dix-sept Rosado,
o governador efêmero que deixou uma saudade no Estado e fez do desastre do rio
um momento de sebastianismo.
Fui revendo a casa, branca, elevando-se,
altaneira, sobre o nível da rua. De um lado, o largo oitão, onde vicejavam
flores. O grande portão se abria sobre a rua, sobre a qual também se debruçavam
as duas amplas janelas, uma correspondendo à sala de estar, a outra à sala de
jantar. E, nesta visão da frente da casa, uma varanda circundada pelos
combongós, a meio caminho do espaço aberto que dirigia o olhar até mais longe,
até encontrar a rua São João e mais longe ainda até o verde carnaubal. Nos
velhos tempos, a casa era festiva e alegre. Ora, ajuntavam-se políticos
confabulando. Ora, na palestra da calçada, reuniam-se amigos e
correligionários, sorvendo café e sucos. Ora, se comemoravam vitórias e
aniversários. Ora, ainda, as portas se abriam para que jovens ali se reunissem
para conversar, dançar e namorar.
A casa teve muitas vidas. Viveu sob
as mais diferentes circunstâncias, com seus moradores e costumes. Já nos
últimos tempos, quando a procissão de São João descia a rua no caminho do
Macapá, ela era a testemunha de pedra e cal de tantos anos que se passaram.
Como assistira às querelas políticas, também assistia à contrição e fervor
religioso do assuense ao seu padroeiro.
Quis descrever a casa, mas meus
olhos se detiveram nas pessoas, nos significativos momentos que, para os cidadãos
assuenses, ali se passaram. Quando procurei fixar meu olhar buscando a exatidão
das paredes em sua espessura, dos lustres com seus pingentes, do teto com seus
caprichosos desenhos, quando ia descerrar a suntuosa cortina bordô, encontrei o
obscurecimento. Como em velhos contos, ou antigas lendas, só restava o pó sobre
todas aquelas coisas, sobre todos aqueles dias. Vagando em derredor, constatei
que todos estavam dormindo profundamente, dentro da noite de São João.
Nessa desolação, me veio à lembrança
o romance de Steinbeck, As Vinhas da Ira, em que ele apresenta o confronto do
indivíduo com a sociedade, ora opressora, ora indiferente; e me ecoou soturno o
diálogo “Quem é a Companhia Shawnee de Terra e Gado? ” – “Não é ninguém. É uma companhia.
”
E a Samaritana que povoara o
jardim, tomou seu cântaro ao ombro e se perdeu na fímbria do horizonte.
Do livro: Daqui eu vejo o Cata-vento. Maria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro.