ANTÔNIO DAS ALMAS – O MULATO BENFEITOR
Ivan Pinheiro*
Dos inúmeros temores da
minha meninice, a maioria arrogada pelos familiares para me manter em casa ou inibir
minha ida a algum lugar guardo, com nitidez, lembranças arrepiantes de cidadãos
que me metiam medo, muito medo. Lembro-me que certa vez cheguei a fazer xixi no
calção, já que calça era coisa de adulto.
Chico
Doido, Miguel da Lata, Perdido, Zé Vidal, Girome, Chico Veneno, Antônio das
Almas... Eram tantos! Muitos desses faziam-me mudar de calçada
ou retornar a toda carreira em qualquer circunstância. Geralmente, às
escondidas, ficava acompanhando com o olhar a trajetória do “espantoso maluco”
para retomar o caminho e concluir o meu destino.
Confesso que meu maior
pânico era quando me deparava com Antônio das Almas (não encontrei ninguém
que tivesse a certeza de onde ele veio... Surgiu. Dizem que tinha familiares em
Pendências). Não tenho notícias de que ele tenha dado alguma carreira numa
criança em todo o seu convívio em Assu. Os outros sim aconteciam com
frequência, até por que eram provocados pela garotada, geralmente, influenciada
pelos adultos.
Mas para “aperrear” Antônio
das Almas era preciso coragem. Grandalhão, moreno, musculoso, maltrapilho
(chapéu velho de palha na cabeça, camisa surrada e amassada, calça segurada na
cintura por um pedaço de corda fazendo vez de cinto – que também servia para
outras atividades -, pernas arregaçadas, pés descalços - dificilmente usava
alpercatas). O cachimbo e um cassetete (um porrete de madeira) completavam sua
indumentária. O mais aterrorizante: morava basicamente no cemitério. Ou seja, num
quartinho ao lado, situado a atual Rua 29 de outubro. O local era conhecido
como “Casa das Almas”. Lá eram guardados os caixões de defuntos para pobres e cadáveres
desconhecidos. Tinha um branco para anjos, outro lilás para moças donzelas e o
terceiro (o mais arrepiador - era preto retinto, com detalhes prateados) para
os demais.
Cabe uma reserva. Quem já
passou dos cinquenta sabe dessa realidade: Até final dos anos sessenta, meados
dos anos setenta (com menor intensidade) a maioria dos pobres se enterrava em
redes. As criancinhas (anjos) eram transportadas até o cemitério em caixas de sapatos,
telhas de olaria ou caixotes de madeira improvisados pelos familiares. A pobreza,
à época, era franciscana - como costumava dizer o saudoso João Marcolino de
Vasconcelos – Dr. Lô.
O leitor poderá até
perguntar: Por que somente três caixões? Porque todos retornavam àquela “Casa das Almas”. O(a) falecido(a) era
colocado(a) na cova sem caixão. Depois mudaram o “depósito funerário” para a Igreja
Matriz no patamar de onde se toca(va) o sino - primeiro andar do lado
esquerdo.
E quem era responsável para
levar e trazer de volta aqueles horrorosos caixões? Quem?... Antônio
das Almas. Sabe o que era se deparar, num beco estreito, com aquele
homenzarrão conduzindo um caixão preto nas costas, vindo em sua direção?
Terror!
Uma determinada vez eu caminhava
displicentemente pelo “Beco do Padre”
(mais parecia um funil, começava razoavelmente largo e terminava estreito em
frente à casa de Edgard) quando, de súbito, quase topei com o dito cujo... Fiz
um giro de 180 graus tão rápido que o vento e a areia fizeram redemoinho. Acho
que cheguei a cair, mas acredito que não toquei no solo. Levantei numa rapidez
indescritível já muito próximo de Antônio das Almas que, rindo da
situação (acredito), bateu fortemente seus pés no chão. Pernas pra que te
quero... Esgoelando-se cheguei à minha casa em segundos, todo mijado.
Pois bem, continuando: Antônio
das Almas era comunicado da morte e levava o ataúde, no ombro, até a
residência do(a) falecido(a). Passava a noite ou o tempo necessário “bebendo o defunto” e, ao final, segurando
uma das abas do caixão, acompanhava o cortejo fúnebre com destino ao cemitério São João Batista passando, quase sempre,
pela Igreja Matriz para as exéquias.
Ao chegar ao Cemitério o caixão
era assentado à beira da sepultura e, quando não apareciam familiares e/ou
voluntários para ajudá-lo a retirar o corpo do ataúde, com naturalidade, ele descia
para a cova, se agarrava com o cadáver e colocava-o no interior do sepulcro.
Na verdade Antônio
das Almas que vivia ao “Deus
dará” era um voluntário para servir aos pobres com ações humanitárias,
gestos incomparáveis... Um cidadão de boa alma.
Nas horas vagas fazia
favores braçais para as pessoas mais afortunadas, como cuidar das sepulturas, carregar
água, lenha, dar fim aos animais mortos, entre outras atividades à custa de
quase nada, financeiramente. Uma cuia de farinha, feijão, açúcar e às vezes um
pedaço de salgado (carne ou peixe) servia como pagamento.
Já adulto, tomei
conhecimento que o então vereador Durval
de Sá Leitão propôs aos colegas da Câmara
Municipal do Assu a concessão de um Título
de Cidadão Assuense ao Antônio das Almas, entre muitos
outros. A propositura (já esperada pelo Edil) foi rejeitada pelos nobres
representantes do povo. Resultado: Durval
nunca mais retornou a Câmara Municipal
perdendo o mandato por abandono de função.
O tempo passou e devidamente
abandonado, já alquebrado pelo tempo, doente e injustiçado, Antônio
das Almas retornou ao seu solo berço para o convívio dos familiares e
por fim poder repousar eternamente no campo santo de sua terra natal (?).
Aquele peregrino, na sua
ingenuidade, tinha a consciência (quem sabe?) de que existiam muitos irmãos
precisando da sua força divina transformada em caridade, amparo material e
espiritual. Assim, sem receio ou vergonha, se apequenou perante o povo e, com
determinação, derramou muito suor e lágrimas em favor da causa, criando a identidade
expressiva da sua personificação. Atitudes raras, digo até, inimagináveis, nos
dias atuais.
*Ivan Pinheiro Bezerra – Historiador
e escritor contista.
Desenho ilustrativo: Ivan Pinheiro