Em Assu, todo mundo que se julgava dotado de algum
talento tinha inveja das coisas que escrevia Seu Caldas. – Confessa-me Dona
Lindú Amorim, recostada em sua cadeira de balanço, numa sala intima de sua
casa, ao lado da antiga agencia do Banco do Brasil, no Centro da cidade. Tem 94
anos, pois nasceu em 1894.
Seu Caldas foi apaixonado, em sua mocidade, por
Alice Wanderley, Maria Alice Wanderley; poetisa, professora, de expressivos
olhos; na linguagem literária da época, uma deidade morena. Figura na antologia
organizada por Ezequiel Wanderley, em 1922. Seu Caldas chegou a escrever para
Alice uns versinhos que se tornaram famosos. Deu o que falar em serões nas
melhores famílias do Assu. Muitos os achavam pueris, outros, que continham um
sentido oculto. Um mistério que queriam adivinhar.
Minha amada pequenina,
Cabe dentro de um dedal.
Como folhas de alfinete
Num carrinho de cristal.
O alfinete a que ele se refere, informa Dona Lindú,
é uma espécie de planta de folhas delgadas, sempre verdes. Verdíssimas, e
espetam-nos quando as tocamos.
O poeta apaixonou-se, também, por Dona Lindú, porem
sobre isto ela não diz nada. Seus irmãos desaprovaram, por que ela era quase
uma menina, revela Enói, sua filha, que frequentemente interrompe nossa
conversa, clamando para que sua mãe não me conte mais nada. Afirma e reafirma
que defunto velho fede. Dona Lindú, porém, continua respondendo às minhas
indagações sobre o poeta João Lins Caldas.
Sua mãe, Dona Fefa, era uma mulher muito distinta.
- Dona Lindú retoma o fio do relato. - Nascida em Goianinha, casou-se com
um assuense. Sofreu muito com o casamento. Dona Fefa me contou que em Bauru ele
foi noivo de uma moça chamada Enói, mas, por um motivo do qual não me lembro,
ou Dona Fefa fez segredo a respeito, acabou-se antes que chegassem a marcar a
data do casamento.
Maria Heloísa, casada com Antonio Félix, lhe dirá
muitas coisas interessantes que enriqueceriam a sua pesquisa de campo sobre o
nosso único gênio. Foi criada por Dona Fefa, uma alma boa que pousou na terra.
Maria Heloisa há de querer reverenciar sua memória, contando-lhe o que sabe...
Procure-a. Vá. Ela terá uma grande satisfação, recebendo-o em sua casa.
Seu Caldas cultivava ódios tremendos daqueles que
ele julgava os ladrões de sua obra poética. Muitas vezes eu o ouvi dizer que
mataria o pai de Elenir por sua obra. Ele, se podemos dizer desta forma, fez o
voto da literatura, para servi-la com devoção e sem salário.
Seu Caldas deixou vários sobrinhos. Waldir, Nair,
Alaíde, Jûnade, José Wilson, Moacir, Hebe, aliás, muito bonita; casou-se com um
Serejo de Macau. Hermelinda, mulher de seu Lins e cunhada de Seu Caldas, era
filha de um Rufino que existiu aqui e foi criada por meu pai, Oswaldo Justino
de Oliveira. Papai era primo de Câmara Cascudo.
Rufino inspirou a Seu Caldas um belo poema. Eu não
sei se ainda me lembro de alguns versos. Vou dizê-lo em prosa. Sua amiga, Dona
Gena, deve ter uma cópia manuscrita...
“Despediu-se no ano de 1956, a morte o levando no
dia do aniversário de Zálix e de Dona Idalina.
– Tantas noites, hora e minuto talvez de quando
nascia, parede e meia com a minha casa, Célia Maria, única entre cinco irmãos,
filhinha do casal Floriano e Dorinha Dantas...”
É um poema muito longo. Não quero cansá-lo...
Sua poesia causava estranheza e inveja. Mais que a
aparência desleixada, causava estranheza e inveja a sua poesia que nos parece
feita de relâmpagos. Eu tenho na ponta da língua um poema curto dele, um poema
que contém em potencia algo terrível. Talvez você queira ouvi-lo da boca dessa
sua velha amiga. É assim:
Sentiu na carne a sua deprimente pobreza
Nos olhos, na cara toda.
E era a pobreza.
Nada da vida lhe sorria em torno.
E era assim essa mal posta mesa.
Um dia, na avareza,
Os homens lhe consumiram toda essa sua tão pequena
riqueza...
– Vamos, está posta a mesa...
E tudo foi essa miséria toda.
Caldas não fez poesia para qualquer leitor,
ressalta a velha senhora, pensativa. Nota-se, em tudo o que escreveu e viveu um
grande mistério. Um acontecimento que não alcançamos. Algo cifrado ao
entendimento. O mistério da poesia...
*Franklin Jorge - Escritor.