segunda-feira, 14 de julho de 2014

CRÔNICA


*FRANKLIN JORGE – Jornalista
Em Assu, todo mundo que se julgava dotado de algum talento tinha inveja das coisas que escrevia Seu Caldas. – Confessa-me Dona Lindú Amorim, recostada em sua cadeira de balanço, numa sala intima de sua casa, ao lado da antiga agencia do Banco do Brasil, no Centro da cidade. Tem 94 anos, pois nasceu em 1894. 
 
Seu Caldas foi apaixonado, em sua mocidade, por Alice Wanderley, Maria Alice Wanderley; poetisa, professora, de expressivos olhos; na linguagem literária da época, uma deidade morena. Figura na antologia organizada por Ezequiel Wanderley, em 1922. Seu Caldas chegou a escrever para Alice uns versinhos que se tornaram famosos. Deu o que falar em serões nas melhores famílias do Assu. Muitos os achavam pueris, outros, que continham um sentido oculto. Um mistério que queriam adivinhar.

Minha amada pequenina,
Cabe dentro de um dedal.
Como folhas de alfinete
Num carrinho de cristal.

O alfinete a que ele se refere, informa Dona Lindú, é uma espécie de planta de folhas delgadas, sempre verdes. Verdíssimas, e espetam-nos quando as tocamos.

O poeta apaixonou-se, também, por Dona Lindú, porem sobre isto ela não diz nada. Seus irmãos desaprovaram, por que ela era quase uma menina, revela Enói, sua filha, que frequentemente interrompe nossa conversa, clamando para que sua mãe não me conte mais nada. Afirma e reafirma que defunto velho fede. Dona Lindú, porém, continua respondendo às minhas indagações sobre o poeta João Lins Caldas.  

Sua mãe, Dona Fefa, era uma mulher muito distinta. - Dona Lindú retoma o fio do relato. -  Nascida em Goianinha, casou-se com um assuense. Sofreu muito com o casamento. Dona Fefa me contou que em Bauru ele foi noivo de uma moça chamada Enói, mas, por um motivo do qual não me lembro, ou Dona Fefa fez segredo a respeito, acabou-se antes que chegassem a marcar a data do casamento.

Maria Heloísa, casada com Antonio Félix, lhe dirá muitas coisas interessantes que enriqueceriam a sua pesquisa de campo sobre o nosso único gênio. Foi criada por Dona Fefa, uma alma boa que pousou na terra. Maria Heloisa há de querer reverenciar sua memória, contando-lhe o que sabe... Procure-a. Vá. Ela terá uma grande satisfação, recebendo-o em sua casa.

Seu Caldas cultivava ódios tremendos daqueles que ele julgava os ladrões de sua obra poética. Muitas vezes eu o ouvi dizer que mataria o pai de Elenir por sua obra. Ele, se podemos dizer desta forma, fez o voto da literatura, para servi-la com devoção e sem salário.

Seu Caldas deixou vários sobrinhos. Waldir, Nair, Alaíde, Jûnade, José Wilson, Moacir, Hebe, aliás, muito bonita; casou-se com um Serejo de Macau. Hermelinda, mulher de seu Lins e cunhada de Seu Caldas, era filha de um Rufino que existiu aqui e foi criada por meu pai, Oswaldo Justino de Oliveira. Papai era primo de Câmara Cascudo.

Rufino inspirou a Seu Caldas um belo poema. Eu não sei se ainda me lembro de alguns versos. Vou dizê-lo em prosa. Sua amiga, Dona Gena, deve ter uma cópia manuscrita...

“Despediu-se no ano de 1956, a morte o levando no dia do aniversário de Zálix e de Dona Idalina.

– Tantas noites, hora e minuto talvez de quando nascia, parede e meia com a minha casa, Célia Maria, única entre cinco irmãos, filhinha do casal Floriano e Dorinha Dantas...”

É um poema muito longo. Não quero cansá-lo...

Sua poesia causava estranheza e inveja. Mais que a aparência desleixada, causava estranheza e inveja a sua poesia que nos parece feita de relâmpagos. Eu tenho na ponta da língua um poema curto dele, um poema que contém em potencia algo terrível. Talvez você queira ouvi-lo da boca dessa sua velha amiga. É assim:

Sentiu na carne a sua deprimente pobreza
Nos olhos, na cara toda.
E era a pobreza.
Nada da vida lhe sorria em torno.
E era assim essa mal posta mesa.
Um dia, na avareza,
Os homens lhe consumiram toda essa sua tão pequena riqueza...
– Vamos, está posta a mesa...
E tudo foi essa miséria toda.

Caldas não fez poesia para qualquer leitor, ressalta a velha senhora, pensativa. Nota-se, em tudo o que escreveu e viveu um grande mistério. Um acontecimento que não alcançamos. Algo cifrado ao entendimento. O mistério da poesia...
*Franklin Jorge - Escritor.

* Fragmento do livro João Lins Caldas no Inferno. http://www.novojornal.jor.br/Opinião. (13/07/2014). 

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