O ENXOVAL
-
Vou num pé e volto noutro, Júlia. Quando voltar, casaremos.
-
Vou ficar esperando agoniada. Quando você voltar o enxoval vai tá pronto. Inté meu
amor. - Beijam-se.
Nilson sobe na carroceria do
caminhão pau de arara. O carro parte, desaparecendo lentamente na poeira,
enquanto Júlia balança as duas mãos num adeus quase interminável. Quando a
poeira baixou e a estrada se mostrou vazia, ela deixou-se cair de joelhos aos
prantos.
-
Nilson, eu te amo!... Te amo, te amo... Não
sei se vou suportar...
O pai Luiz e a mãe Marta
pegam a jovem por baixo das axilas levantando-a.
-
Vamos filha, ele voltará logo. – Disse a mãe.
No meio de dezenas de
parentes dos viajantes e de curiosos, o jovem conhecido por Caeba, visivelmente
embriagado, observando a cena deu seu palpite:
-
Agora volte! Da Bahia mais pra dentro... Aqui é lugar de preguiçoso, vagabundo
como eu!
-
Cale a boca seu bêbado chato! – Advertiu o velho Luiz.
-
Oh, mãe... (chorando) - Também sinto que ele não vai voltar... Não vai voltar!
-
Calma filha, Remanso é perto. Depois do período da pesca ele retornará à
Juazeiro. Aqui é o lugar dele... Vocês se amam e irão se casar - Falou
o pai tentando consolar a filha, uma das jovens mais formosas do lugar.
A caminho de casa Julia se lamentou
o tempo todo.
Havia anos que não entrava
água pelo canal natural da Lagoa. A pescaria, comercialmente, tinha acabado. Nilson
era pescador e como a Lagoa do Piató estava praticamente seca tinha ido ganhar
a vida no Lago de Sobradinho – Remanso/BA. As populações das comunidades do
entorno da Lagoa viviam momentos de aflições. Quase todos os homens foram
pescar em Sobradinho - onde a pesca era farta. Ficaram basicamente as mulheres,
crianças e idosos. Famílias inteiras abandonaram suas casas e partiram. Época desoladora.
Dia após dias Júlia chorou
na tentativa de descarregar e serenar a tensão.
Estava vivendo de tristezas e
quase não se alimentava. Vivia deitada ou pelos cantos da casa sempre chorando.
Havia se passado três meses sem nenhuma notícia.
Seu Luiz vendo a tristeza da
filha foi ao quintal, amarrou as duas marrãs de porcas do chiqueiro, que ele estava
cevando para matar no casamento, e as levou para vender na feira do gado, em Assu. Com o dinheiro da venda das bacorinhas
comprou tecidos para confecção do enxoval de Júlia e Nilson. Há tempo não via a
filha esboçar um sorriso, mesmo que sem graça. Ela, abraçando os tecidos, foi
diretamente para a velha máquina de costura para começar a trabalhar. Tinha
aprendido a costurar na adolescência, quase criança, com a mãe. Não era uma
exímia costureira, mas sabia o essencial para uma casa. Confeccionar seu
enxoval era uma questão de honra. Tinha prometido ao Nilson... E se ele
chegasse e não estivesse pronto? Sua ansiedade era tanta que ao iniciar a
costura do primeiro lençol não ajustou devidamente a máquina e a agulha
quebrou. Ela ficou nervosa... Olhava a agulha sem querer acreditar... Quebrar
agulha era sinal de que logo haveria morte na família.
Sete meses se passaram e
nada de notícia do Nilson. Depois de sua partida muita coisa tinha acontecido,
a lagoa tinha recebido água e a Barragem Armando Ribeiro tinha sangrado pela
primeira vez. Todos os reservatórios estavam cheios. Tudo indicava anos de
farturas.
Os lençóis, fronhas, panos
de pratos e toalhas já estavam prontos, faltando tão somente bordar os lençóis.
Júlia estava justamente bordando o lençol em ponto de cruz com as iniciais “NJ”
quando, de súbito, ouviu um grito forte:
-
Chegaram os cassacos de Sobradinho! Chega meu povo, venham receber seus
parentes! Vamos comemorar! – Gritou Caeba.
Júlia deu um pulo da cadeira
e quando deu por si tinha quebrado a agulha e furado seu dedo indicador, que
sangrava. Quebrar a segunda agulha era mais um aviso de mau pressentimento. Não
se incomodou, jogou tudo num canto e saiu desesperada porta afora em busca do
caminhão. A pacata comunidade de Juazeiro ficou em alvoroço, surgiram pessoas
de tudo quanto era buraco. Abraços, choros, beijos... A alegria do reencontro
dos parentes era inebriante.
Júlia ficou aguardando até o
último passageiro descer. Nada de Nilson. Chorando, cabisbaixa, foi retornando
para casa quando Tiago – amigo do casal, a chamou:
-
Júlia! – entregando-lhe um envelope – Nilson ficou... Tá juntando dinheiro pra comprar uma casa pra vocês.
Ele tá trabaiando feito um bicho. Daqui uns trinta dias tá por aqui.
Julia recebe o envelope,
agradece e vai saindo com a mesma tristeza. Caeba observando a cena não perdeu
tempo:
-
Eu não disse que ele não vinha! Fique esperando sua besta, vai morrer donzela...
(batendo
no peito) Eu estou à disposição! - fechou
o deboche com uma gargalhada.
Júlia fez de conta que não
tinha ouvido e saiu em direção à casa dos pais. Sentou, leu a carta. “-... Não se avexe Júlia. Por amor
enfrentamos tudo. Chegarei em breve. Saudades... Beijos, Nilson.”
A depressão de Júlia
aumentou. Conselhos e mais conselhos dos pais, vizinhos, e nada... Todas as
tardes ela pegava um lençol e ia para a beira da lagoa. Sentava na proa de uma
canoa e ficava bordando até o sol desaparecer por trás dos montes. Numa destas
tardes, quando estava concentrada no bordado, um barulho a assustou e, no sobressalto,
ela quebrou a agulha. Levantou a vista, colocou a palma da mão sobre os olhos,
tentando evitar o reflexo solar e gritou:
-
Nilson, você voltou meu amor! Eu sabia que você vinha... Amor da minha vida!...
(levantando
os braços) Olhe, este é o último lençol...
Terminei o nosso enxoval...
Júlia caminhou em direção ao
seu eterno e único amor...
-
Chega meu povo! A donzela tá se afogando! – Gritou Caeba.
Quando os pescadores
conseguiram retirar o corpo de Júlia da água já não tinha mais o que ser feito.
Morreu abraçada com o lençol.
O corpo de Júlia estava
sendo velado na capela da comunidade quando entra numa correria desenfreada o
Caeba.
-
Outra desgraça! – respirou fundo e concluiu – Deu na Rádio Princesa que o pau de arara que
vinha com os pescadores bateu num jumento, depois da ponte de Assu e virou... (pausa)
Tem muita gente ferida e um morreu:
Nilson!...
No bolso de Nilson estava
uma caixinha vermelha em forma de coração com duas alianças. O casal foi
sepultado no cemitério da comunidade numa única sepultura. Na cruz de mármore foi
escrita: ‘Nilson Matias e Júlia Fernandes
(+ 10/05/1985) – Casados na eternidade’.
Dizem que o por do sol no
Piató ficou mais sentimental... Quem contempla aquela beleza, quase sempre,
lembra-se de um amor impossível e termina chorando.
Autor: Ivan Pinheiro (abril/2014).
Fotos ilustrativas. Por do sol: PortoPiato.blogspot.com
COMENTÁRIO:
Que história!!! Não ao acaso, eis explicações ao suspirante ar, por do sol como citado e encantamento da lua e Lagoa do Piató.
Fotos ilustrativas. Por do sol: PortoPiato.blogspot.com
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Que história!!! Não ao acaso, eis explicações ao suspirante ar, por do sol como citado e encantamento da lua e Lagoa do Piató.
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