segunda-feira, 7 de abril de 2014

CONTO

HORA DO ÂNGELUS¹
 
O irmão havia dito que estaria no aeroporto quando ela desembarcasse. Faltava pouco. Ela observava o início de um fim de tarde através da breve janela do avião. Era confusa a sensação de voltar para casa, após vinte anos. Atada a um assento flutuante, percebeu que as nuvens iam, pouco a pouco, tomando a forma de suas lembranças. “Tripulação, preparar para o pouso”.

Naquela época, voltava correndo da escola. Um avexamento. Chegava com a poeira da rua nos anseios da fome. Porta de madeira, casa de taipa. Encontrava a mãe sempre rezando o terço. Um grão por vez dedilhava: arroz hoje, feijão amanhã – aridez. Ao menos uma vez por semana, corria para encontrar uma mãe envergonhada, prostrada diante da mesa vazia. O irmão, arremessado tal semente no arado do campo, vivia num mundo a parte. Empinar pipas era a única diversão dele. Ela, então, vagava pelos cantos. Parte pelo roncar da barriga, parte pelo constrangimento de encarar aquela mulher apática perante a miséria. Os olhos molhados brotando da secura da terra.

Certo dia, resolveu vagar por mais tempo. O vazio do estômago transposto para o peito. Lembrava da mãe de quem se afastara, sem jamais, no entanto, olhar para trás. É que da fome do prato nasceu a vontade de viver. Até então, havia apenas sobrevivido. Quem conhece a injustiça quando jovem, quase sempre ajusta os ponteiros com o destino. Pelas caronas em beira de estrada, chegou à cidade grande, onde o tempo passava mais depressa. A mãe se tornara, tanto a tanto, uma lembrança distante. Balão subindo bem longe, ao sabor do vento. A ligação do irmão, na véspera de seu retorno, havia trazido o balão de volta: a mãe padecia adoentada.

No portão de embarque, um irmão de fotografia vinha ao encontro dela. Tanto tempo depois, o semblante – que ela não saberia decifrar – carregava a dor de um sujeito áspero. Homem de terra seca e olhos molhados. O abraço foi demorado – pipa no céu sem nuvens. Lembrou-se da antiga casa. A taipa socada tal a confusão das emoções. Ele estava bem, mas a mãe sofria há anos em cima de uma cama. Já quase sem lucidez, havia mandado chamar a filha.

Seguiram poeira de estrada a fora. No trote do carro, segurava as palavras dentro da boca. Falta de assunto. Eram dois estranhos. Em pouco mais de meio relógio, chegaram. Ela mal acreditava no que via: pouco havia mudado naquela terra de chão seco. O azul da porta de madeira, tal qual resgatado da memória, parecia mais esmaecido. Não recebera tinta. Como se não bastasse, o ranger da abertura desdobrou a realidade da qual ela tentara fugir.

Do que lembrava, agravara-se a penumbra do lugar. O cheiro de vela acesa, de flor trazida da lonjura da terra fértil. No quarto, uma mãe de recordação, disforme e apagada, tossia num pedaço de trapo. O definhar da mulher suplantava anos de abandono. A filha enxergava, além da fome, o desamor. Lamentou duas décadas antes que pudesse perceber o sinal da mãe pedindo sua aproximação. A filha, com remorso, somou seu ouvido à boca da envelhecida figura. A mãe precisava dizer alguma coisa. Lutando contra a prostração do corpo, ergueu a cabeça num esforço sussurrante: era um pedido de desculpa. A filha, desnorteada, indagava-se sobre o porquê. Nem precisou perguntar. A resposta veio em seguida. Com frases curtas, pediu perdão pelas ocasiões do prato vazio. É que, vinda da escola, em sua ignorância, a filha jamais soube da verdade. O irmão, no arado e na pipa, bastava-se no sol suas energias. A mãe, nas alturas da fome, deixava de comer para alimentar a filha, todos os dias. Uma vez por semana – nessa única vez da semana em que a filha encontrava o prato vazio – a mãe, mal posta de pé, cedia à vergonhosa tentação de não morrer. Por fim, onde a filha fugitiva enxergara a apatia, residira uma mãe dedicada.

Alguns raios do sol ainda encaravam o solo seco. O sino na igreja, lá distante, badalou seis vezes antes do anoitecer – hora do ângelus. A mãe deixara, finalmente, a velha casa de taipa. No desabar do corpo, permitiu que escapasse lentamente, por entre os dedos, um terço antigo, tantas vezes dedilhado.

¹Nair das Capoeiras - Pseudônimo de LIS BARROS VILAÇA - Natal
1º Concurso Assuense de Literatura Celso Dantas da Silveira.
Livro: escrínio da Literatura Potiguar.
Foto ilustrativa.

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