HORA DO ÂNGELUS¹
O irmão havia
dito que estaria no aeroporto quando ela desembarcasse. Faltava pouco. Ela
observava o início de um fim de tarde através da breve janela do avião. Era
confusa a sensação de voltar para casa, após vinte anos. Atada a um assento
flutuante, percebeu que as nuvens iam, pouco a pouco, tomando a forma de suas
lembranças. “Tripulação, preparar para o
pouso”.
Naquela época, voltava
correndo da escola. Um avexamento. Chegava com a poeira da rua nos anseios da
fome. Porta de madeira, casa de taipa. Encontrava a mãe sempre rezando o terço.
Um grão por vez dedilhava: arroz hoje, feijão amanhã – aridez. Ao menos uma vez
por semana, corria para encontrar uma mãe envergonhada, prostrada diante da
mesa vazia. O irmão, arremessado tal semente no arado do campo, vivia num mundo
a parte. Empinar pipas era a única diversão dele. Ela, então, vagava pelos
cantos. Parte pelo roncar da barriga, parte pelo constrangimento de encarar
aquela mulher apática perante a miséria. Os olhos molhados brotando da secura
da terra.
Certo dia, resolveu vagar por
mais tempo. O vazio do estômago transposto para o peito. Lembrava da mãe de
quem se afastara, sem jamais, no entanto, olhar para trás. É que da fome do
prato nasceu a vontade de viver. Até então, havia apenas sobrevivido. Quem
conhece a injustiça quando jovem, quase sempre ajusta os ponteiros com o
destino. Pelas caronas em beira de estrada, chegou à cidade grande, onde o
tempo passava mais depressa. A mãe se tornara, tanto a tanto, uma lembrança
distante. Balão subindo bem longe, ao sabor do vento. A ligação do irmão, na
véspera de seu retorno, havia trazido o balão de volta: a mãe padecia
adoentada.
No portão de embarque, um
irmão de fotografia vinha ao encontro dela. Tanto tempo depois, o semblante –
que ela não saberia decifrar – carregava a dor de um sujeito áspero. Homem de
terra seca e olhos molhados. O abraço foi demorado – pipa no céu sem nuvens.
Lembrou-se da antiga casa. A taipa socada tal a confusão das emoções. Ele
estava bem, mas a mãe sofria há anos em cima de uma cama. Já quase sem lucidez,
havia mandado chamar a filha.
Seguiram poeira de estrada a
fora. No trote do carro, segurava as palavras dentro da boca. Falta de assunto.
Eram dois estranhos. Em pouco mais de meio relógio, chegaram. Ela mal
acreditava no que via: pouco havia mudado naquela terra de chão seco. O azul da
porta de madeira, tal qual resgatado da memória, parecia mais esmaecido. Não
recebera tinta. Como se não bastasse, o ranger da abertura desdobrou a
realidade da qual ela tentara fugir.
Do que lembrava, agravara-se
a penumbra do lugar. O cheiro de vela acesa, de flor trazida da lonjura da
terra fértil. No quarto, uma mãe de recordação, disforme e apagada, tossia num
pedaço de trapo. O definhar da mulher suplantava anos de abandono. A filha
enxergava, além da fome, o desamor. Lamentou duas décadas antes que pudesse
perceber o sinal da mãe pedindo sua aproximação. A filha, com remorso, somou
seu ouvido à boca da envelhecida figura. A mãe precisava dizer alguma coisa.
Lutando contra a prostração do corpo, ergueu a cabeça num esforço sussurrante:
era um pedido de desculpa. A filha, desnorteada, indagava-se sobre o porquê.
Nem precisou perguntar. A resposta veio em seguida. Com frases curtas, pediu
perdão pelas ocasiões do prato vazio. É que, vinda da escola, em sua
ignorância, a filha jamais soube da verdade. O irmão, no arado e na pipa,
bastava-se no sol suas energias. A mãe, nas alturas da fome, deixava de comer
para alimentar a filha, todos os dias. Uma vez por semana – nessa única vez da
semana em que a filha encontrava o prato vazio – a mãe, mal posta de pé, cedia
à vergonhosa tentação de não morrer. Por fim, onde a filha fugitiva enxergara a
apatia, residira uma mãe dedicada.
Alguns raios do sol ainda
encaravam o solo seco. O sino na igreja, lá distante, badalou seis vezes antes
do anoitecer – hora do ângelus. A mãe deixara, finalmente, a velha casa de
taipa. No desabar do corpo, permitiu que escapasse lentamente, por entre os
dedos, um terço antigo, tantas vezes dedilhado.
1º Concurso Assuense de Literatura Celso Dantas da Silveira.
Livro: escrínio da Literatura Potiguar.
Foto ilustrativa.
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