A COBRA
A comunidade de Juazeiro
era para alguns de seus moradores o local ideal para se viver. Lá dinheiro não
tinha muito valor, especialmente para os homens. Uma questão cultural. O macho
que não gastasse tudo que ganhasse durante a semana no final da mesma, não era
homem com H. Era manicaca, palerma, manobrado pela mulher. Se fosse solteiro
era viado.
O pescador Manoel era um dos que cultuava esta prática.
Se o rendimento fosse um pouco maior passava até uma semana na esbórnia...
Acordava de madrugada, selava e colocava os arreios no cavalo alazão - seu
maior patrimônio, além de uma mulher e cinco filhos, aliás, uma “escadinha”
onde o mais velho tinha oito anos – e rumava para a cidade. Parecia um doutor.
Roupa branca, chapéu de massa preto, botas pretas com esporas prateadas. No
braço um chicote de couro cru e sobre a sela do animal uma coxa macia
confeccionada de retalhos brancos. Um revólver 38 na cintura e uma faca
peixeira de 12
polegadas completavam a indumentária.
Quando Manoel chegava à feira livre do Assu, os feirantes
ainda estavam organizando seus produtos para iniciarem a comercialização.
Parava seu alazão debaixo dos pés de fícus localizados por trás da Matriz e
dirigia-se para o Mercado. Na primeira bodega que abria ele já pedia uma dose
de aguardente e solicitava ao proprietário guardar o coxim. Enrolado neste, ele
entregava o revólver e dizia com ênfase:
- cuidado com
este “coxim”, mais tarde eu pego!
Manoel quando estava
embriagado era metido a namorador, arruaceiro... Violento. Uma particularidade:
sóbrio ou bêbado pagava bebida pra “gato e cachorro”.
Certo dia, já meio
embriagado, Manoel foi adentrando na Padaria
Santa Cruz - de propriedade de Solon, quando ouviu, de soslaio:
- Um negro
desse só quer ser doutor, só anda de branco...
Manoel não procurou ouvir
mais nada, mudando de rota, foi até o desafeto e sentou-lhe a mão no ‘pé’ do
ouvido que o mocotó levantou.
- Taí... Essa
é pra você respeitar um homem preto...! Galego cor de merda! - Falou Manoel com o dedo em
riste. Deu meia volta e saiu sem dizer pra que veio à padaria.
O homem levantou, passou a mão nas nádegas e tratou de
sair rápido do recinto. Sabia que se revidasse morreria ali mesmo. Pensou
consigo: “Também, o que eu tenho a ver
com a maneira de vestir daquele negrão?”.
Naquele dia Manoel bebeu
enraivado. Pensava constantemente: “Porque
não acabei com a vida daquele amaldiçoado. Estou ficando mofino?”. – Depois
de circular por todos os cabarés da cidade do Assu Manoel retornou para casa já
quase à noitinha.
O cavalo caminhava lento,
conhecia o percurso de volta para casa como nenhum outro. Somente assim seria
possível conduzir seu proprietário de volta à comunidade naquele estado de
embriaguez.
Ao chegar a Juazeiro, Manoel foi direto para uma bodega que também vendia cachaça. Parou o
cavalo e desceu com dificuldade. Sentou num tamborete e pediu:
- Seu Romão,
uma dose de cachaça bem grande. Hoje eu quero afogar minhas mágoas.
Seu
Romão trouxe a dose de aguardente e colocou sobre a única mesa do alpendre.
Aproveitou a oportunidade para perguntar:
- Já passou em
casa? Deixou a feira dos meninos?
- Que nada seu
Romão. Hoje foi um dia de cão! – Respondeu Manoel depois que tomou a cachaça,
dando uma cusparada no canto da parede.
- Homem, vá
para casa, você já bebeu demais, amanhã tem que trabalhar – Aconselhou o velho
bodegueiro.
- Acho que vou
tomar seu conselho. O senhor sabia que eu estou ficando mofino? Hoje um
sujeitinho inventou de me desafiar... O senhor acredita que ele está vivo? Pois
está vivo! Eu estou ficando covarde... Frouxo.
Manoel pagou a dose e saiu
em direção ao cavalo. Montou no animal ajudado por Seu Romão. Ao sair o alazão
levantou as duas patas e recuou assustado. Manoel caiu. Seu Romão gritou:
- É uma cobra,
cuidado!
Manoel se levantou cambaleando.
- Essa é a
segunda praga que me desacata hoje. Essa eu mato! – E saiu aos tombos em
perseguição à cobra. Na penumbra da noite, ao tentar apanhar um pedaço de pau,
pegou no corpo da cobra. A serpente se sentindo ameaçada o picou.
Naquele desespero, Manoel sem conter a raiva segurou a
cobra com as duas mãos, levou-a a boca e com uma dentada partiu-a em dois
pedaços... Cuspiu o pedaço que estava à sua boca dizendo:
- Você me
morde diabo, mas eu lhe toro no meio!... - Ao pronunciar esta frase Manoel foi caindo
lentamente.
- Quem está
ai? Onde estou? Por que este escuro? Estou cego? - Pergunta Manoel.
- Sou eu
Maria, sua mulher... Você foi picado por uma cobra de cipó. Escapou, mas o
médico acha que você não vai mais voltar a enxergar...
Mesmo cego Manoel nunca deixou de usar roupa branca e de
andar a cavalo. Algumas coisas mudaram: diminuiu o hábito de tomar cachaça;
aproximou-se mais da família e transformou-se num homem sereno... Covarde e
frouxo, nunca!
O médico diagnosticou certo.
Manoel morreu aos 83 anos de idade sem voltar a ver a luz do sol.
Livro: Dez Contos & Cem Causos - Ivan Pinheiro
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