A MULHER DO VAQUEIRO
Arilo Luna*
A compra da fazenda foi a realização de um sonho. Não era lá grande coisa. Seiscentos hectares, um açudeco que melhor levaria o nome de barreiro, e uma casa de taipas onde residia o vaqueiro.
De quebra, fizeram parte do negócio, quarenta cabeças de gado, quarenta semoventes esqueléticos, enegrecidos pelo carrapato, que na ocasião, lambiam pedras e palitavam os dentes nos talos de marmeleiro do ressequido sertão de Quixeramobim.
Mas para Alípio Guedes, dentista, funcionário público (com todo respeito) não importava o estado de abandono em que se encontrava a propriedade.
Realizara um desejo antigo: ser dono de alguma terra. Era como matar um recalque de infância. Para a fazenda, tinha a cabeça cheia de planos. Aos poucos, dentro de suas posses, iria construir a casa de morada, um açude de vergonha e semear capim.
Mas, o importante é que doutor Alípio, tornou-se fazendeiro, e levou a sério! Largou a costumeira roda de cerveja no boteco e, religiosamente, toda madrugada de sábado, tocava o carro rumo a Quixeramobim.
Lamentava a falta da casa de morada, pois, a contra gosto, tinha sempre de retornar na tarde do mesmo dia.
De certa feita, quando chegava à fazenda, a mulher do vaqueiro veio ao seu encontro.
- Doto, o Zé foi visitar um parente qui tá pra morrer. Mas deixou dito qui vorta no começo da tarde.
O dentista coçou a cabeça.
- Mas logo hoje que eu trouxe as vacinas... O danado desse parente não podia ter arranjado dia pior pra adoecer... Bom, não tem que fazer, se não esperar... Vou esperar... Vou aproveitar pra dar umas voltas e vê o gado.
Ao meio dia, a mulher do vaqueiro fez milagres com o pouco que tinha. Enquanto o almoço era servido, Alípio ficava de butuca nas formas bonitas da cabocla. Aqueles seios empinados, aquelas ancas largas há meses povoavam seus sonhos. Ela corava, derrubava as panelas, embaraçada no olhar visguento do patrão.
O sol se aninhou no poente e o vaqueiro não retornou.
A boca da noite, enquanto tomava café, o dentista falou:
- Minha senhora, acho que o parente do Zé morreu e ele só vem amanhã depois do enterro. O diabo é que eu estou com as vacinas do gado dentro do carro num depósito com gelo e, se não forem usadas até amanhã vão estragar. Vai ser o jeito esperar Zé, pra mostrar como se aplica... Bom, nesse caso, vou ver se tiro um cochilo dentro da Belina.
- Oxente doutor, nem pensar. Qui vexame maior, o senhor o dono da fazenda, drumindo dentro do carro... O senhor vai drumi é numa rede branca, novinha, armada aqui na sala.
- Não, minha senhora, de maneira alguma. Não vou incomodar e além do mais...
Ela atalhou com um gesto de mão.
- Ave Maria, dotô, onde já se viu, o sinhô drumindo no relento?
A rede foi armada. Os dois foram dormir num clima tenso, cerimonioso. Ele na sala, ela no quarto ao lado, separados por meia parede.
Ela apagou a lamparina com um sopro alto – Ffuuu.
Ele, do seu lado, apagou com maior estardalhaço – Ffuuuuu.
Ele roçava o pé no punho da rede – Roc, roc, roc.
Lá fora, o pai do chiqueiro bodejava atrás das cabras, comia e bufava satisfeito.
O tempo passava. A cabocla tossia, ele pigarreava. A palha de banana chiava, o punho da rede respondia.
Depois de dez minutos de silêncio, como se houvesse um pacto entre homens e animais, ela usou o pinico num som de cachoeira. Ele deu um instante de trégua e arrancou do seu urinô uma sinfonia de biqueira. A lua descambou.
Deu-se outro hiato de silêncio e, de repente, a voz encabulada da mulher do vaqueiro atravessou a parede:
- Dotô, já qui o sinhô vai me faltar com a vergonha, falte logo qui eu já tô com sono...
*Livro: As águas Doces do Rio Salgado.
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