quarta-feira, 1 de abril de 2015

CORDEL:

História do povo Otxucaiana, também chamado Tarairiú, que habitava a Ribeira do Açu, nas terras do Rio Grande do Norte.
Autor: Benedito de Sousa Melo

01. Caboclos da minha terra,
Peço vossa inspiração,
Para contar a história
Dos índios do meu Sertão,
Que tinham muita coragem,
Mas foram postos à margem
Pelas forças da opressão.

02. Na roda-viva do tempo,
Já foram donos de tudo:
Serra, várzea e tabuleiro,
Bicho pequeno e graúdo;
O que deixaram, de herança,
Pouco resta, na lembrança,
Quase tudo ficou mudo.

03. A Ribeira do Açu,
Há muitos tempos atrás,
Era habitada por índios,
Nossos bravos ancestrais,
Perambulando na terra,
Desde a várzea até a serra,
No meio dos catingais.

04. Chamavam-se Potiguara,
Os índios do litoral,
No tempo das conhecidas
Grandes piscinas de sal,
Naturalmente formadas
Nas planícies alagadas,
Onde seria Macau.

05. Tarairiú era o nome
Dos índios do interior,
Que, outra língua, falavam,
Sendo um povo lutador;
Usando tacape e dardo,
Depois de haver dançado,
Guerreavam sem temor.

06. Os Potiguara viviam
Na vizinhança do mar,
Onde hoje é Paraíba,
Rio Grande e Ceará;
Falavam língua tupi
E utilizavam tingui
Quando queriam pescar.

07. Os índios Tarairiú
Eram donos do Sertão;
Possuíam muitos chefes,
Cada um mais valentão;
Do Assú ao Seridó.
Lutaram, num corpo só,
Contra a colonização.

08. Chamava-se Janduí,
Um índio longevo e forte,
Que viveu mais de cem anos(1),
Até que lhe veio a morte;
Chefe de muitos guerreiros,
Corajosos e ligeiros,
Que duelaram com a sorte.

09. Esculpiam, no jucá,
Suas bordunas temíveis;
Quando partiam pra luta,
Eram sujeitos terríveis;
Além de bons corredores,
Não padeciam temores,
Estes guerreiros incríveis.

10. As mulheres eram fortes,
Além de muito jeitosas,
Traziam pernas robustas
E maneiras decorosas;
Plantavam batata e milho,
E conduziam seus filhos,
Nos afazeres das roças.

11. Kuniangeya era o nome
Do vale do rio Açu;
Otxucaiana era o povo,
Ou, também, Tarairiú,
Que dominou esta terra,
E sabia fazer guerra,
Que assustava urubu.

12. Então vieram colonos
Das bandas de Pernambuco,
Ocuparam todo o vale,
Com gado, para ter lucro,
E fornecer aos engenhos,
Minas e outros empenhos;
Nisso, o índio ficou puto.

13. Junto com esses colonos,
Os negros também chegaram;
Capturados no Congo,
Os traficantes ganhavam
Dinheiro, com suas vendas,
Para a lida nas fazendas,
Que os colonos fundavam.

14. Já faz quatrocentos anos
Que negros pisam este pó;
Trouxeram muitos saberes,
Que sobrevivem ao redor;
Também, nove baobás,
Para honrar os ancestrais,
Plantaram no Piató(2).

15. A Ribeira do Açu,
Mirada, foi, por franceses,
Que não fundaram colônia,
Mas vieram os portugueses,
Que traziam seus zagais,
Para cuidar dos currais,
Com touros, vacas e reses.

16. Era um tempo de disputa
Dos Estados europeus,
Que buscavam alianças
Para os interesses seus;
Aliciavam os nativos,
Para fazê-los cativos,
Usando o nome de Deus.

17. As tramas, que eram urdidas,
Os nativos percebiam;
A pretexto de amizade,
As suas terras, queriam,
Pois capitães portugueses,
Em guerra com os holandeses,
Escravos, índios, faziam.

18. Há mais de trezentos anos,
Os holandeses tomaram
O Nordeste brasileiro
E, aqui, perambularam
Astrônomos, naturalistas,
Pintores, também cronistas;
Muitas coisas, registraram.

19. Os índios Otxucaiana,
Há muito tempo sabiam
Que os brancos portugueses,
As suas terras, queriam,
Pra transformar em curral;
Na extremidade do mal,
Índios, escravos, seriam(3).

20. Foi por isso que ocorreu
A memorável união
De milhares de guerreiros,
Vindos de todo o Sertão;
Armas de fogo, usaram,
Em cavalos, batalharam,
Pra não ter escravidão.

21. Foi na década de oitenta
Dos anos mil e seiscentos,
Que houve a Guerra do Açu(4),
Morrendo índios aos centos,
Que os bandeirantes mataram,
E os massacres duraram
Após mil e setecentos.

22. Fizeram muitas promessas
Aos chamados maiorais
Da Ribeira do Açu,
Para não lutarem mais;
Bem longe, eram levados
E, lá, seriam poupados,
Se não voltassem jamais.

23. Foi isso que ocorreu
Ao grande Rei Canindé,
Senhor de todo o Sertão,
Homem, menino e mulher,
Pois o Rei de Portugal
Prometeu não fazer mal,
Se o índio mudasse a fé.

24. Canindé foi batizado,
Junto com outros guerreiros,
Que rumaram pra missão,
Onde não foram os primeiros,
Que, para mudar a sina,
Sujeitavam-se à rotina
Dos padres missioneiros.

25. Os portugueses, contudo,
Não cumpriram o acordado,
Pois, acima da palavra,
Imperava criar gado;
Para a colônia aumentar,
Mais terras iam tomar,
Como fora projetado.

26. Os capitães portugueses,
Casas-fortes, construíam,
Para lutar contra os índios,
Que no sertão resistiam,
Do Assú ao Seridó,
Desde Acauã(5) ao Cuó(6),
Os capitães se escondiam.

27. Foi o tempo em que chegou,
Nesta frondosa ribeira,
Coberta de carnaubais,
Um tal Bernardo Vieira,
Que deixou feito um presídio
Para engaiolar o índio
Que praticasse "besteira".

28. Os parceiros holandeses
Já se haviam debandado,
Como parte de um acordo,
Com Portugal, celebrado,
E o povo Tarairiú,
Da Ribeira da Açu,
Foi sendo dilacerado.

29. Mas ocorre que as famílas,
Em muitas localidades,
Possuem traços indígenas,
Que têm visibilidade,
E guardam recordações,
Vivendo, por gerações,
Na mesma propriedade.

30. Casar-se primo com prima
É um costume existente,
De modo que tem lugar
Onde todos são parentes,
E transmitem, como herança,
A persistente lembrança
De antepassados valentes.

31. Falam de uma bisavó,
Cabocla muito "danada",
Pega a casco de cavalo,
Para fazer-se casada
Com um vaqueiro valente,
Dando origem àquela gente,
De natureza mesclada.

32. Têm diversos apelidos,
As famílias do lugar:
De Caboré a Cabôco,
Pacamom e Carcará;
São memórias ancestrais,
E pode saber bem mais
Qualquer um que perguntar.

33. Alinhavei estes versos
Com minhas palpitações,
Pois a história contada
Anda cheia de omissões.
Sou filho dos Carcará,
E vim aqui expressar
Minhas nativas pulsões.
Alto do Rodrigues/RN, março de 2013.

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(1) O cronista holandês Roulox Baro ("Viagem ao País do Tapuias", 1647) afirma que o chefe Janduí teria ultrapassado 160 anos. Por causa do costume de identificar os índios com o chefe, os Tarairiú seriam chamados de "Jandoins".
(2) "Piató": Lagoa do Piató, no município de Assú/RN, onde, além dos nove baobás (herança africana), há uma comunidade indígena, conhecida como "Caboclos do Assú".
(3) Foi para resistir à tomada das terras indígenas por criadores de gado de origem portuguesa, que o chefe Janduí, dos índios Otxucaiana, estreitou, em 1638, amizade com os holandeses, os quais haviam arrebatado da Coroa portuguesa o domínio sobre a região Nordeste, produtora de açúcar, em nome da empresa denominada "Companhia das Índias Ocidentais".
(4) A Guerra do Açu, também chamada 'Guerra dos Bárbaros', de acordo com Pedro Puntoni, ocorreu "desde o último quartel do século XVII até a segunda década do século seguinte" ("A Guerra dos Bárbaros", 2002).
(5) "Acauã", nesta passagem, é a "Serra da Acauã", mais conhecida como "Serra de Santana", sendo uma referência à região do Seridó, onde existem construções dessa natureza.
(6) "Cuó", neste verso, alude à "Serra do Cuó", elevação topográfica do município de Ipanguaçu/RN, onde há uma casa-forte.
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POSFÁCIO

Salientamos que o texto ora concluído buscou a forma literária do folheto de poesia popular ("cordel") para contar uma história, sem pretender alcançar caráter historiográfico. Fica explicado, deste modo, o conteúdo sucinto, destinado apenas a passar algumas informações sobre o tema, sem a extensão e o rigor científico necessários para constituir uma História dos "Indios do Rio Açu". Ainda assim, esclarecemos algumas passagens nas poucas notas ao fim do texto.
Bento Carcará
Enviado por Bento Carcará em 20/05/2013
Reeditado em 19/06/2013
Código do texto: T4299854
Classificação de conteúdo: seguro
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Postado por FERNANDO CALDAS.

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