sábado, 13 de julho de 2013

CONTO

O SONETO SECRETO¹
 

Naquele tempo, em Itabira, era meninote, ainda, de calça curta e inocência. Brincava de carro-de-boi imaginário, já que não tinha mesmo um carro-de-boi de brinquedo de verdade. Mas já percorria, por isso, as veredas desse ofício de imaginâncias. De fato, já na pratica das primeiras letras da alfabetização, lia muito bem pra minha idade; eis, certamente, minha primaz habilidade: ler o alheio. Meu pai, um jardineiro dado às politicas, orgulhava-se em dizer que, lendo eu tão bem, entraria pra vida pública. Papai cuidava dos jardins de um casarão colonial que ficava no fim da rua. Era pertencente aos Andrade. Mas há tempos andava quase sempre fechado. Os velhos já lá não mais estavam; apenas o filho, Seu Carlos, vinha vez ou outra, lá do Rio de Janeiro, pra modo de rever lembranças. Era poeta famoso, diziam as gentes bestas que viviam uma vida belamente besta naquela cidadezinha besta qualquer. Pra mim era apenas um sujeito pequenino, magrinho, magrinho, já calvo da testa ao meio da cabeça altiva; usava óculos e era muito alvo. Era mesmo diminuto, mas, não sabia então o porquê, já aquela figura mirrada e indefesa parecia-me gigantesca, grandiosa. 

Houve um dia especial. Nunca havia, aquele senhor, me dirigido a palavra. Mesmo porque papai não me deixava frequentar o casarão; certamente temente que meu desmazelo destruísse qualquer coisa. Sempre fui mais dado a destruir que a construir coisas. Mas, naquela tarde especial, dirigiu-me duas ou três palavras, já escurecidas na deslembrança, enquanto punham suas bagagens n carro, pra viagem de volta. Enquanto papai ouvia instruções sobre um canteiro de hortênsias ou gerânios, entrei distraído a brincar de boizinhos no frio chão do casarão. Fui dar numa sala cheia de livros, com uma escrivaninha muito ordenada no meio. Sobre ela, um papelzinho solitário jazia sereno. Larguei o brinquedo passeante e imaginoso e lancei mão titubeante ao papel branquinho, branquinho. Ofegava de temor que meu pai me surpreendesse naquela aventura, mas avancei incauto. Tinha ali algo escrito que, gaguejante, pus-me a ler malmente. Aquelas palavras eram, pra um meninote, claro, enigma a ser decifrado.

Desnorteantes os devaneios da amizade,
Conduzem à tortuosa alameda do amor.

Amputei de súbito a leitura. O vento deu na cortina. Abandonei lépido o papel e troquei passos apressados. Mas a curiosidade de menino quietou meu passo fugitivo. Voltei-me e, de um golpe, dobrei o papelzinho precioso dentro do calção e saí sorrateiro. Parece que eu antevia os auspícios que me traria aquela folhinha branca. Ainda vi seu Carlos volta-se adentro a procura de algo – o papelzinho, talvez -, mas foi-se embora logo depois. Li e reli deveras aqueles escritos que indecifravelmente me embriagavam de palavras brumosas, nas quais apenas percebia o tom íntimo, emocionado, maior. Como tempo soube que era um poema; era um soneto, pra ser mais preciso de verso branco como o papel. O mais belo que jamais li.

O tempo passou soberano – porque o tempo é rio caudaloso – e me tornei um rapazola já de calças longas, voz vacilante entre tenor e soprano, rosto fustigado de acnes e uma penugem sob o nariz avisando um bigode. Mas o mundo é um vasto mundo e mudamo-nos de Minas pra terras potiguares-como gosto desse nome! -, pois papai recebera de um certo senador da República, velho conhecido, uma proposta de trabalho. Estabelecemo-nos na capital. À custa de rapapés, mesuras e pequenas humilhações, meu pai consegui-me uma bolsa de estudos no Colégio Marista. Colégio de gente rica e eu, pobre, vesti-me da casca fingida da riqueza fingida.

E o rico soneto estava sempre comigo, bem guardado, secreto, segredado, amarelado e amassado pelo tempo e pelo manuseio leitor. E por obra do poema, vesti-me também de poeta. Escrevia versos em rompantes tresloucados de vaga inspiração. Às vezes, ate com relampejos de engenho e arte camonianos. Escrevia muito, mas meus versos nunca suplantaram uma mediocridade sublime, uma parvice requintada. Mas era poeta, ora. Todos assim alcunhavam; sei bem que com uma ponta de chacota, um tanto de desdém. Mas essa era uma fama que, falsa ou não, bastava-me. Mas invejava aqueles versos do soneto secreto, e decidi de vez ser gauche mesmo, e chamava-o de inspiração. Lia-o e relia-o todos os dias, feito oração. Por esse tempo, já conhecia a grandiosidade do seu legítimo criador. E por seus viés, conheci Pessoa, Dias, Bandeira, Espanca, Baudelaire, João Cabral, e tantos outros. Mas não mostrei meu hinário nunca a ninguém; dividia sua existência apenas com alguém que não sabia, mas por que paragens ele versava, mas que não o esquecera, por certo, porque poetas não esquecem jamais. Aquilo era meu catecismo que um dia, eu cria, acenderia a chama de um poema legítimo resgatando-me do fracasso do meu brejo das almas. 

E, então, aconteceu Amália. E já o nome era-me poético: Amália era como uma corruptela de amar-lha, de amar a ela. E foi isso que ouve: amei perdidamente Amália desde o primeiro momento em que a vi, assim como amei e desamei perdidamente uma dezena de garotas naquele tempo de amores juvenis, carregados de desejo, angústia e pasmo. Não que fosse a donzela mais emprincesada do mundo. Era ate feinha. Cheinha de corpo como uma musa barroca de Rubens. Mas aqueles roliços joelhos! E aquele colo! Colo e joelhos machadianos. Foi a mais eterna quinzena de paixão que jamais tive.

Mas era preciso conquistar Amália. E pra conquistar a alguém, a um poeta não há melhor artifício que um belo poema, pensava. E pus-me a compor, convocando todo meu parco engenho e arte, mas o bendito verso enlevado, vindo direto da Arcádia, não me chegava, não me alcançava. Foram ás dúzias os papeis amassados, rasgados. E nada... Foram horas noturnas mortas, de sono e de inspiração, que, como a um ultrarromântico, só me trouxeram olhos vermelhos e dificuldades nos estudos. Não me vinha o verso ideal pra arrebatar Amália.

Mas, por essa época, já lera que todo poeta e um fingidor e decidi-me a fingir. Lancei mão do que tinha de mais valioso: o soneto segredado. Copiei-o deslavadamente, não apenas pra personificar a caligrafia, mas na esperança de que me enganasse também a mim que realmente fosse seu autor. E reescrevi apenas um verso central – algo haveria de ser meu, pois não? - e dediquei-o descaradamente, calorosamente à adorada Amália. Numa saída de aula, enquanto carregava os livros de minha musa de então, pus o benditozinho dentro de sua agenda escolar e, irrequieto e sudorento aguardaram até o dia seguinte o resultado de minha astúcia. Mas, na chegada à escola, ela se que me olhou; não se dignou a me dirigir mesmo uma palavra vã. Praguejei contra o soneto: deveria saber que não era mesmo grande coisa. 

Mas, à saída, embaixo duma mangueira, Amália veio até a mim e disse baixinho que partilhava do mesmo sentir e que jamais lera versos tão tocantes, tão encantadores. Num gesto rápido e tímido, mas quente como o sol assuense, beijou-me os lábios. E não é que o amor é isso mesmo: hoje beija, ontem não beijou. Senti aquele cheiro inebriante de hábito de mocinha apaixonada, e abracei-a trêmulo e inseguro, porque amar se aprende amando. Abracei as formas arredondadas daquele corpo. E, ligeira como veio, correu de volta às amigas que observavam ao longe, entre risinhos de inveja ou de escárnio. Assim amei Amália, pelo menos naqueles relâmpagos instantâneos da adolescência.

E minha amada deu de exibir o meu soneto – ah, não me julguem assim: quem há de dizer que já não era meu? E os mestres, cansados de ler meus versos medíocres, diziam que agora sim eu acertara a mão, que agora eu produzira uma obra prima. E decidiram que tal obra tinha casta pra uma publicação no jornal da escola. Um frio de fio de navalha me perpassou: e se poetaitabiranolesse o jornalzinho? Mas qual nada... Já se viu esse jornaleco chegar ao Rio de Janeiro? Essa idéia me tranqüilizou e deslizei nas brumas da fama escolar. Mas veio também um articulista do maior jornal potiguar e aventou publicar o soneto numa edição dominical. Lembro-me que meu pai, sempre às voltas com a política, era só orgulho. Dizia que sempre soube que eu daria pra algo, que eu era das letras; sonhava já que seria advogado, deputado e, quem sabe, senador.

E o soneto secreto ficou famoso. Saiu publicado na edição dominical, no caderno de arte e cultura, vejam vocês. Agora tudo se agigantava. Estive sobressaltado de temor de que alguém reconhecesse aqueles versos, que me pegassem no recôncavo da mentira. Mas isso nunca ocorreu. Fiquei famoso: o poema concebeu o poeta. Esforcei-me por criar outros tantos poemas, mas jamais escrevi algo digno de nota, que dirá de publicação. Tornei-me um poeta de um poema só.

Nunca contei a ninguém tudo isso. Segui a viver a vida como fingidor que finge ser verdade a verdade que deveras mente. Mas não digam nada a ninguém. Ninguém sabe, nem nunca saberá.

AUTOR: ¹Carlinhos - VALDIR MOREIRA DA SILVA - Vencedor do "1º CONCURSO ASSUENSE DE LITERATURA" - PATRONO: CELSO DANTAS DA SILVEIRA - CONTOS / POESIAS  TROVAS. 
Livro: Escrínio da Literatura Potiguar.
Desenho ilustrativo. 

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