quarta-feira, 31 de maio de 2017

CULTURA:

 (FALA PROFERIDA NO AUDITÓRIO DA UERN DURANTE O EVENTO “III LETRAS EM CONFERÊNCIA”)
Oh Vida! Os teus milagres nem sempre são doçuras, mas não me dês tanto! Não me dês tanto, tanto, tanta amargura.
Escreveu o pensador, o filósofo João Lins Caldas.
No momento que esta universidade realiza o evento (III Letras em conferência), quero dizer que a poesia caldiana já está convenientemente estudada pela professora Cássia de Fátima Matos dos Santos na sua tese de doutorado, porém ainda tem muito a se contar e dizer sobre a trajetória e obra de João Lins Caldas.
Caldas era tipo magro, baixa estatura, andar curto e ligeiro, voz mansa, afetuoso, porém, se tornava intempestivo quando alguém discordava dos seus versos, dos seus conceitos visionários. Certa vez, certo amigo ao visitá-lo em sua casa de morada encontrou o poeta declamando chorando um poema de sua autoria. Ao terminar a sua oração aquele amigo e igualmente poeta, saiu-se com essa: “Caldas, eu não entendi o que você acabou de recitar”. Caldas foi solene, dizendo assim: “Eu estou declamando para os sábios como eu!”
Caldas chega à fidalga cidade de Assu por volta de 1900, acompanhando seus pais João Lins Caldas e Josefa Leopoldina Lins Caldas. Seu pai era natural de Assu e sua mãe nascera em Goianinha (de tradicional família Torres Galvão, ambas as ascendências de tradição na terra potiguar), cidade onde também nascera o solitário e amargurado poeta que hora relembramos. 
Lembro-me dele, Seu Caldas como ele era habitualmente chamado na cidade Assue (eu era ainda adolescente), pelas ruas da terra asuense onde ele era admirado por poucos e incompreendido por muitos. 
Lembro-me dele na sua modesta casa parede e meia, de porta e janela de duas lâminas, da Rua Ulisses Caldas, do Macapá, tradicional bairro de Centro da cidade de Assu, além das suas constantes visitas a casa de meu avô paterno com quem ele, Caldas, alimentava uma amizade desinteressada, sempre vestindo paletó e gravata com aquela simplicidade que lhe era peculiar, declamando seus versos, falando de política local e nacional, contando a sua vida atribulada e atormentada vivida no sudeste do Brasil. 
Produziu uma obra literária (ele tinha a sua própria forma de construção gramatical) multifária, extensa e bela, de invejar qualquer autor, de contextos diversificados com muita obsessão pelo tema morte.
“Meus mortos vivos nunca apodreceram.” - Diz num verso.
Romântico e apaixonado como sempre viveu, escreveu o esteta Caldas:

Coração malsinado das torturas,
Coração de mulher sem amor ter,
Goza um pouco a ventura de querer
Que este gozo é maior que outras venturas.

Tens, como as dores que hoje tens seguras,
Do amor a porta sem poder se erguer.
Ah! Que ventura se ilusões, das puras.
Hoje pudesse coração, conter!

Mas não! Que o gelo que dá vida à morte
É o mesmo gelo que campeia forte
Nesse teu seio onde batalha a dor...

És para o tédio e para o mal nascido...
Muda essa sorte, coração ferido,
Abra essa porta para o meu amor!...
 
Seus versos retrata a dor, a angústia, a solidão, o amor fracassado. Aliás, teria sido ele, penso eu, um dos poucos poetas brasileiros a escrever poemas com aspectos eróticos (umas das vertentenses da sua obra poética) no Brasil, alheios aos preconceitos da época, seguindo os moldes parnasianos, no começo da primeira metade do século XX como, por exemplo, o poema intitulado “De joelhos”, que o Almanaque Popular Baiano, de Salvador, publicou, para 1909, pág. 116, que evoco neste instante: 

Na areia brilhante nos dias de calma
Chegaste. A minha tentação. De joelhos
Me sinto a morder os lábios teus vermelhos...
Caio... E’ a febre... E tu morres e eu morro
Transfigurado a ti pedir socorro...
Vem... chega mais perto... o braço estende
Entre o teu, o meu corpo aperta e prende...
Flores à noite... a madrugada em flores...
E aqui meu coração e os teus ardores...
O silêncio vacila, a treva ordena.
Vamos!... a plateia é deserta... ao palco! Acena!
Afasta as rendas, do teu corpo afasta...
Esta roupa que odeio, esta camisa gasta...
Um trono a madrugada, a relva um ninho.
Deixa... eu aperto a tua mão no meu carinho...
Nua... a tua carne branca num arrepio
Me anuncia o calor a bendizer o frio...
(...)
Soo... a tua carne cansa e o coração a vida
Um beijo... mas outro... a tua carne em brasa...
E o meu instinto ao teu instinto casa...
(...)

E esse outro poema escrito nos moldes modernistas intitulado “Volúpia”, que ele escreveu sedento de amor:

Eu fui perturbar teu sono. Despertar a carne da tua mocidade.
Desgrenhar teu cabelo, dar febre ao teu sangue.
Perdoa, pela minha mocidade.
O lençol revolvido
O travesseiro molhado...
Se houve a tua a tremer, a minha cama na noite não soube também o que era ter sono.

Ainda mais essa joia de poemeto:

Quero-te. Vem. As carnes palpitantes
A forma tua onde a beleza mora...
És tu. Quero-te assim. Meu corpo implora
A graça que desce dos contornos...
Trêmulas as mãos e os lábios mornos.
 
Mora em Natal entre 1908 e 1912, colabora em jornais daquela capital e envia seus escritos inspiradores para grandes almanaques e folhinhas de farmácia daquela época.

Em fins de 1912, aos 24 anos de idade regressa ao Rio de janeiro, então Capital da República, mora em quarto de pensão, colabora em jornais como O Globo, ganhando pouco, o suficiente para o seu sustento diário, emprega-se no serviço público federal (Ministério do trabalho), colabora em importantes jornais e revistas do país, frequenta com assiduidade a Biblioteca Nacional, lendo os maiores autores das letras universais e frequenta as livrarias José Olímpio e Garnier, da rua do Ouvidor, Centro da capital fluminense convivendo com Ribeiro Couto, Guilherme de Almeida, Olavo Bilac, Monteiro Lobato, José Geraldo Vieira, dentre outras figuras que engrandece as letras nacionais.

Em 1917 muito antes da Semana de Arte Moderna, de 1922 começa a cantar no verso livre. O comovente poema intitulado A casa nos conta a sua história, que para Newton Navarro, expressa “a terrível realidade daquela casa fechada, com restos de morte dos seus mortos mais queridos, sobras de vida pelos móveis, salas, corredores, até no pavio apagado da lamparina tisnenta”, é um exemplo que ele escrevia versos brancos, emancipados de métricas. Declamo:

Fechai a casa toda vós todos que estais dentro de casa.
A casa nos vai dizer o seu segredo, a casa nos vai dizer o que é ela
a nossa casa.
Aqui cresceram choros de crianças
Os nascidos choraram
Embalaram-se da rede adolescentes
Velhos saíram nos seus caixões, esticados os pés, hirtos e mudos como tijolos levados.
Escrevi dos meus versos
Pensei dos meus pensamentos amargurados.
O cabelo comprido,
A barba pontiaguda, mal alinhada,
E das mesas, sobre as toalhas velhas
Os pratos fumegantes,
A incidência da luz sobre os armários.

Vamos, irmãos, tudo é entre sombras.
O medo
O cuidado
As mãos mortas,
O pavio do candeeiro,
Tudo é recordado.

... E ao comprido que se balouça esticada,
Uma cabeça, uma cabeleira preta,
Pés que se estiram, mãos alongadas...
Vamos, irmãos, eu que estou reparando, de retrato, esse quadro que se alonga ao longo da parede.

No eixo Rio-São Paulo escreveu treze livros que para Celso da Silveira “tinham títulos que já valiam poemas.” Antes, porém, quando morava em terras potiguares teria escrito quatro livros. Pena que ficaram apenas organizados em manuscritos e depois destruídos pelas traças, por guardá-las em malas e caixotes com precariedade ou por não saber onde guarda-los, talvez, pela sua genialidade que lhe deixava atordoado.

Entre 1912 e 1927, permaneceu no Rio de Janeiro. Em 27 regressa a Bauru, interior de São Paulo, já com emprego garantido na estrada de Ferro Noroeste do Brasil (NOB), ferrovia vinculada ao Ministério da Viação, onde colabora no jornal Correio de Bauru. Ali começa um processo investigativo, denunciando ao Supremo Tribunal Federal, supostas irregularidades praticadas por alguns auxiliares do ministro da Viação José Américo de Almeida. Causa que levou Getúlio Vagas a aposentá-lo precocemente, aos 45 anos de idade, percebendo um salário miserável. Indignado escreveu ao presidente Vargas:

“A inconsciência nacional manifestou. Mas Deus é consciência e eu ainda espero em Deus.”

Sem obter resposta, endereçou outra mensagem ao presidente Vargas (que não se sabe ao certo, se aquelas mensagens chegaram ao conhecimento daquele estadista), de tal modo:

“Se não guardou nome amigo que por Vossa Excelência tão denodadamente lutou guardará nome amigo que por Vossa Excelência tão denodadamente lutará.”

Volta em 1933, a sua cidade de Assu, terra que escolhera para viver a sua maturidade, decepcionado e desiludo por não ter conseguido publicar-se trilíngue: português, inglês e francês, cujo trabalho se tivesse publicado, entendia Caldas que teria alcançado a glória, o reconhecimento e se tornaria um dos nomes mais representativos da poética universal.

Em 1936, o poeta que não conseguiu a sua aspiração maior: ganhar um Nobel de Literatura com a publicação da sua obra imortalizou-se, pois foi colocado como protagonista na segunda fase do romance urbano de ficção, “essencialmente carioca” intitulado Território Humano, do escritor, seu amigo íntimo, o paulistano nascido nos Açores, Portugal, considerado por Érico Veríssimo como “o mestre do romance Brasileiro”, encarnado no personagem Cássio Murtinho.

Afinal, em 1975, Celso da Silveira organizou a antologia póstuma de João Lins Caldas intitulada Poética, editado pela Fundação José Augusto, cujo livro chegou às mãos do poeta pernambucano Mauro Mota que aquela época dirigia o Suplemento Literário do Diário de Pernambuco. Ao ler o livro, Mota externou (nota publicada naquele periódico) que naquela coletânea tem três ou quatro poemas que são dos mais belos da língua portuguesa, incluindo o célebre e universal poema sob o título Isabel:

Uma Isabel morreu no mundo.
Tinha pai e mãe, irmãos e sobrinhos, aquele mundo de primos no mundo.
Avós enterrados, bisavós trepidantes nos cernes duros de árvores agigantadas.
Ascendentes outros na nervura de asas e barbatanas de peixes.
Isabel hoje estava cansada.
Remontava das suas origens a dias muito anteriores aos dias de Tebas,
Viveu de fresco os poemas de Homero,
A guerra de Tróia,
O passado de Sócrates,
E, caída Cartago, soldados ruivos, assalariados, mortos.
Não soube nada d sua crônica.
Era uma mulher, vestida de saia, os cabelos compridos
E se alimentava de pão, rapadura e mel.
Isabel tinha linhas nas mãos.
Uma sorte que estava escrita, diferente sem dúvida das outras sortes.
O destino de Isabel, o destino da vida como dos outros que carregam a morte.
Eu nunca vi Isabel.

Muito obrigado.

Fernando Caldas 
Postado pelo blog Fernando Caldas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário