MESTRE ETEWALDO
A história do escultor de obras como a estátua de Iemanjá, na Praia do Meio, e do “beijo” de um casal de namorados, no Parque das Dunas, é de superação e talento nato.
Por Rafael Barbosa
UM GAROTINHO QUE SAIU DE ASSÚ, no interior do Rio Grande do Norte, para a capital do estado com a família, nos anos de 1940, cresceu e conquistou reconhecimento por meio da cultura popular. O mestre Etewaldo Cruz Santiago teria completado 78 anos em 14 de janeiro, se vivo estivesse. Ele deixou para Natal cartões postais como a estátua de Iemanjá, na Praia do Meio, e a do casal de namorados, exposta no Parque das Dunas, apesar de pouca gente saber que as obras são de sai autoria. Entre o legado, deixou também o filho Edvaldo, artesão apaixonado como ele e divulgador incansável do trabalho do pai.
O assuense de origem humilde começou ainda na infância a dar os primeiros passos no desenvolvimento das artes manuais. “Ele dizia que foi a avó dele a primeira pessoa a reconhecê-lo como artista”, recorda Edvaldo Santiago. Etewaldo observava a avó, que era rendeira, enquanto ela fazia alfenim, um doce comum no Nordeste brasileiro. Com a massa branca de açúcar, ele moldava pequenas miniaturas de patos. Aí a avó dele dizia “esse menino tem jeito pra artista. Faça mais”, conta o filho.
Ainda pequeno, partiu com os pais para Natal, em busca de melhores oportunidades de vida. Era época da Segunda Guerra Mundial. O pai Etewaldo trabalhou na Base Aérea abrindo estradas para os militares. “Ele contava que ainda pequenininho ia para a Ribeira, via os aviões no Rio Potengi”, relata Edvaldo.
Até então, o contato maior com o artesanato que o mestre tinha era na fabricação dos próprios brinquedos, com peças de madeira. O menino foi crescendo e, adolescente, se viu diante da necessidade de ajudar em casa. Edvaldo conta que o pai foi trabalhar também na Base Militar. Dispondo de facilidade para o desenho, ajudava os mestres de obras na confecção de plantas baixas e demais serviços relacionados a essa arte. “Ele sempre gostou de arte”.
Etewaldo foi ainda entregador de revistas, trabalhou no Corpo de Bombeiros e, entre um trabalho e outro, conheceu Dona Eliete. Foi numa igreja evangélica que se apaixonou pela viúva que se tornou sua companheira até o fim da vida. Com ela constituiu família e continuou morando em Natal, onde nasceram seus dois primeiros filhos. Edvaldo é o segundo dos nove filhos do casal. Ele recorda de ouvir, ainda criança, o pai dizer repetidas vezes que tinha vontade de conhecer a cidade de Ceará-Mirim. Naquele tempo não era fácil visitar uma cidade vizinha, diferentemente de hoje.
RELAÇÃO COM CEARÁ-MIRIM
“Ele caçava com um amigo, que dizia que Natal não tinha muito bicho para a prática, mas em Ceará-Mirim tinha mais, e tinha o chamado veado campeiro, que era o animal maior que o caçador podia pegar”, lembra Edvaldo. Foi assim que começou a relação do escultor com a cidade da Grande Natal, onde depois foi radicado e reconhecido como artista.
Em um certo dia no final da década de 1960, o tal amigo caçador então propôs a Etewaldo que lhe ajudasse a levar uma encomenda para Ceará-Mirim. O mestre topou a proposta de trabalho, muito mais pelo desejo de conhecer o município. Quando chegou ao Centro da cidade, ficou encantado com o mercado público, o prédio da prefeitura. A arquitetura colonial deixou o artista embasbacado e ele decidiu que queria se estabelecer ali com a família. Não contou conversa: conseguiu contato com o pároco, que lhe arrumou uma morada de aluguel, um primeiro andar perto da estação do trem.
Em Ceará-Mirim, o mestre Etewaldo se virava para sustentar os filhos com fotografia. Fazia foto 3x4 e também trabalhava com restauração e ampliação fotográfica. Ele fazia o que hoje faz o programa PhotoShop, só que à mão. O filho conta que, depois de ampliar a foto, o mestre consertava as falhas pintando a imagem. “Ele também colocava joias e dentes de ouro quando as pessoas pediam. Era um trabalho incrível, ficava perfeito”, detalha.
ESCULTURAS DE ARGILA – O INÍCIO
Foi na época de fotografias em Ceará-Mirim que surgiu a proposta do cunhado Januário, também artista. “Meu tio disse a ele que era melhor começar a trabalhar com argila, era uma coisa que se fazia pouco ainda por aqui, e ele o convenceu que levava jeito”, relata Edvaldo. A família estava crescendo e o patriarca precisava de uma fonte de renda além da fotografia para conseguir pagar as contas. Então começou a praticar a nova arte: escultura de argila.
Em 1971, acompanhado de Januário, Etewaldo seguiu para São Paulo vender suas primeiras produções. Foi um sucesso na Praça da República. Muito mais desenvolvida e culturalmente ativa, a capital paulista consumia arte de maneira mais ávida do que Natal e o Rio Grande do Norte.
As estatuetas do mestre Etewaldo se esgotaram e ele voltou feliz para casa, certo de que dali sairia mais uma fonte de sustento. As viagens se repetiram e o artesão sertanejo de Assú passou a ficar conhecido fora do estado. Contudo, faltava ganhar prestígio no RN.
A FOTOGRAFIA PARA JORNAL E A PROJEÇÃO ARTÍSTICA PARA O RN.
Apesar de já conseguir tirar algum dinheiro do artesanato, o assuense permaneceu com o trabalho fotográfico. Com fontes na delegacia local, o fotógrafo da cidade era sempre comunicado quando algum crime ocorria nas cercanias próximas do município. Ele clicava os fatos e vendia para os jornais da capital.
“Uma vez chegou aqui um jornalista, Alexis Gurgel. Eu era menino. O jornalista veio aqui atrás de uma foto”, conta Edvaldo. Quando chegou à casa de Etewaldo, Alexis se deparou com o trabalho manual que o artesão produzia com argila. A pauta mudou o rumo.
O jornalista fez uma reportagem em que divulgou para o Rio Grande do Norte a arte do mestre Etewaldo de Ceará-Mirim. Dali em diante ele não parou mais. Edvaldo acompanhava de perto, mesmo criança, e afirma que foi depois da matéria veiculada no jornal que o pai começou a receber convites para participar de feiras e encomendas para produção de estátuas e bustos.
A cada dia, o ofício da fotografia ficava mais a cargo de Dona Eliete, pois aumentavam as viagens e convites para exposições. Edvaldo diz que logo no começo da TV Universitária foi ao ar uma matéria com seu pai. A família se reuniu toda na casa de um vizinho que tinha televisão para acompanhar a entrevista. “O povo começou a dizer: rapaz, Seu Etewaldo tá importante mesmo, saindo na televisão”. Ele se tornou ícone da cultura em Ceará-Mirim. As obras de arte nas praças, o painel que mostrava a cultura da cana-de-açúcar, atividade comum à cidade, a estátua do caboclo na entrada de Ceará-Mirim, tudo foi o mestre Etewaldo Cruz Santiago quem produziu.
DO NU ARTÍSTICO PARA O BEIJO
Foi nos anos de 1970 também que o artesão foi convidado, pelo jornalista Paulo Macedo, para confeccionar a estátua que enfeita o Parque das Dunas, naquela época chamado de Bosque dos Namorados. Edvaldo lembra que o pai contava que tinha a intenção, em um primeiro momento, de produzir um nu artístico nesta obra. Mas foi alertado que poderia sofrer represálias da Ditadura Militar. “Aí ficou aquele beijo mais inocente”, acrescenta Edvaldo. O artesão passou a ser procurado pela elite potiguar para produção de peças particulares. De acordo com o que conta Edvaldo, até o ex-governador Geraldo Melo contratou os serviços do mestre Etewaldo. “Fez para ele um São Francisco bem grande”, emendou.
Entre as obras públicas mais conhecidas, além da estátua dos namorados, estão a estátua de Iemanjá, os três Reis Magos construídos na praça da igreja do bairro de Santos Reis, e a homenagem a um famoso médico natalense que tinha costume de pescar peixe pampa, estátua que foi erguida na Praia do Meio, próximo a um posto de combustíveis e em frente ao Clube dos Pampas.
Ceará-Mirim, Taipú, João Câmara e Cerro-Corá também têm estátuas assinadas pelo mestre Etewaldo, eternizado em suas obras de argila e cimento Rio Grande do Norte afora.
FILHO, FÃ E APRENDIZ
A ascensão de Etewaldo Cruz Santiago provocava orgulho nos filhos e familiares. Um caboclo humilde do interior havia ganhado, com sua arte, as salas e jardins de personalidades importantes do RN. Edvaldo Santiago iniciara a moldar suas peças também, sob inspiração e influência do pai. Aos 19 anos de idade, quando ainda servia ao Exército Brasileiro, recebeu a ordem de um general para que convidasse Etewaldo para produzir um painel e um soldado que iriam ornar a frente do batalhão. Trata-se da obra que foi levantada na entrada da sede do 16º Batalhão de Infantaria Motorizada, na avenida Hermes da Fonseca, birro do Tirol, em Natal.
Ao comunicar Etewaldo sobre o convite, Edvaldo recebeu a grata surpresa: o pai queria a sua ajuda. “Aí eu fui lá ajudar. E até ele assinou lá ‘Etewaldo e Edvaldo’. Eu não queria, mas ele disse que tinha que assinar com os dois”. Edvaldo abraçou arte para a sua vida também e, até hoje, vive de vender suas obras em feiras de artesanato como o pai fazia. A reprodução das mulheres rendeiras é o que mais sai, assim como era com Etewaldo.
Falecido em 2006, aos 67 anos de idade, por complicações no fígado, o mestre Etewaldo deixou sua obra espalhada por diferentes lugares do RN. Por aqui também ficou o aprendiz, contador de suas histórias e herdeiro do fazer artístico da família Santiago, o filho Edvaldo.
Transcrito da Revista Bzzz – Ano 4 / nº 43 / Janeiro de 2017 / páginas 16 a 21.
Fotos: Rafael Barbosa e Arquivo.
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