terça-feira, 12 de novembro de 2013

SÃO RAFAEL

Meu chão voltou
Repórter acompanha a sua mãe numa visita às ruínas da cidade que emerge das águas rasas da barragem Armando Ribeiro Gonçalves; com outros moradores da região colhe lembranças sobre a inundação ocorrida há 30 anos

Tallyson Moura - DO NOVO JORNAL

“Nunca pensei que fosse pisar neste chão novamente”. As palavras foram ditas por Maria, ao reencontrar entre os escombros de sua velha casa os pedaços do piso de mosaico por onde andou na infância e parte da vida adulta. Mas poderiam ter saído da boca de José, Antônio, Rafael, Josimar e tantos outros que, como ela, foram expulsos de seus lares há exatos trinta anos, sem perspectiva nenhuma de retorno.

Para reencontrar a própria história, só confiando no destempero da natureza. Precisou que viesse ao sertão potiguar a maior seca dos últimos cinquenta anos para que as raízes de pedra, barro e madeira de um povo inteiro ressurgissem, a despeito do tempo, quase intactas. A antiga São Rafael, cidade do Vale do Açu encoberta pelas águas da Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves, está de volta. Por enquanto.
Foto: Vlademir Alexandre/NJ.
 
Maria da Conceição Moura, professora aposentada, volta a pisar o chão da casa em que viveu na cidade antiga de São Rafael, onde identificou cada cômodo: três quartos, três salas, uma dispensa, a cozinha e o banheiro Basta que volte a chover – e o povo sertanejo torce por isso – para que tudo desapareça novamente em meio as águas verdes do maior reservatório de água potável do Rio Grande do Norte. “Mas pelo menos, agora, a gente já sabe o quanto nossa base é resistente. A água pode até voltar a subir, mas a gente tem a certeza de que a nossa história estará para sempre lá, firme e forte”, comemorou a professora aposentada Maria da Conceição Moura, conhecida como Maria Perré.

A barragem alcançou o nível mais baixo desde sua inauguração em 20 de abril de 1983. Está hoje, de acordo com o monitoramento da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos, com apenas 38,23% de sua capacidade. Partes da cidade que jamais apareceram estão emergindo. A casa de Maria é um exemplo.

“Eu tenho dois sentimentos ao ver isso tudo aqui. O primeiro é de alegria por ver novamente minha casa; o outro é de tristeza, por ver toda esta destruição. E junto ainda vem um turbilhão de lembranças que eu vivi aqui”, conta. Maria morou a infância inteira na ‘cidade velha’. De lá, mudou-se para estudar o ensino fundamental II (na época, o ginásio) em Parelhas, mas voltou ao concluir o magistério.

Localizar a sua antiga casa, em meio ao monte de velhas estruturas, não foi difícil. A residência ficava próxima à praça, ao lado de algumas pedras, com cerca de um metro de altura. Maria, ao chegar no local, identificou cada cômodo: três quartos, três salas, uma dispensa, a cozinha e o banheiro. Entre os escombros, encontrou as travas das janelas (grandes pedaços de madeiras que garantiam a segurança da casa) e o antigo piso de mosaico, meio desbotado, mas ainda com a tonalidade vermelha preservada.

Rememorando uma foto feita no aniversário de 27 anos, em janeiro de 1983, Maria Moura, hoje com 57 anos, repetiu a pose e se escorou novamente na mesma pedra de 30 anos atrás. “É como se eu voltasse no tempo” destacou.

Escombros de uma cidade sob a seca

O projeto da Barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves foi uma iniciativa do Governo Federal, através do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS). As águas do rio Piranhas-Açu foram represadas cobrindo toda a área urbana e boa parte das propriedades rurais da cidade, localizadas, principalmente, no leito do rio. Foram desapropriados 20.636 hectares, dos quais 9.665 foram inundados já de início.

A população foi relocada para uma cidade projetada a 5 km da antiga. A nova São Rafael fica a 220 km da capital do estado, Natal. Para perder o mínimo possível, ao serem removidos da cidade antiga, os moradores retiraram partes do piso das velhas casas e todas as estruturas de madeira, deixando somente os escombros.

A baixa da Armando Ribeiro trouxe à tona detalhes históricos da vida dos antigos são rafaelenses. Como um bom guia, Maria mostrou onde ficava cada parte da cidade. Feitos de tijolos resistentes, como não se vê mais hoje, os alicerces e paredes das principais estruturas da cidade sobreviveram aos 30 anos de imersão sem muitos danos.

“Ali era a casa do motor que fornecia energia elétrica para a cidade até as 10h da noite”, apontou. Ela também mostrou onde ficava a praça, os Correios, e a rua da Prefeitura, da Câmara dos Vereadores, do Cine Teatro e do posto médico. Na quadra de esportes, ainda como todas as demarcações, era onde aconteciam o carnaval e as maiores festas da cidade. Mas nos dias comuns, o espaço era palco de partidas de futsal, vôlei e basquete.

A torre da antiga igreja, que se manteve de pé até 2010 em meio aquele ‘marzão’ de água doce, mantém suas bases expostas. Durante anos, foi o maior símbolo da cidade. Atualmente, até o cemitério, que ficava numa parte mais baixa da cidade, reapareceu. As cruzes dos túmulos emergiram mostrando que, ali, a história – com vida e morte - sobrevive.
Do Novo Jornal - Domingo 10/11/2013.

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