João Lins Caldas, o Cássio Murtinho de José Geraldo Vieira
O poeta João Lins Caldas e o romancista José Geraldo Vieira
Transcrevo abaixo para conhecimento principalmente dos jovens inteligentes e estudiosos do Assu, o longo e importante depoimento do romancista José Geraldo Vieira, afirmando que o poeta potiguar do assuense João Lins Caldas (1888-1967) é o seu Cássio Murtinho, personagem da segunda fase do seu romance urbano de ficção intitulado Território Humano, 1936. O escritor Vieira (falecido em 1967 era amigo íntimo de Caldas nos tempos de de Rio de Janeiro) é considerado um dos grandes autores do romance moderno brasileiro. Vamos conferir o depoimento de Geraldo Vieira proferido na Academia Paulista de Letras em 19 de outubro de 1971, na ocasião do "Ciclo de Conferência realizado na própria Academia [Biblioteca Mário de Andrade], no período de 5 a 19 de outubro de 1971, em comemoração ao quadragésimo ano da ficção de José Geraldo Vieira", abaixo transcrito:O poeta João Lins Caldas e o romancista José Geraldo Vieira
"[...] Qual, pois, o personagem meu que aqui deva ser explicado, já que um decoro íntimo e sacrossanto me obriga a fechar Adri, Jandira e Plurabela de encontro ao coração, como aquele leque fechado e quieto do verso de Mallarmé?
Creio que o mais interessante, por sua singularidade e por não ser mentira como parece ser eu lhe disser o nome seja Cássio Murtinho. Se bem se lembram, é o terceiro personagem (como acabamento) de Território Humano. Comparado a todos os demais personagens de meus romances {romances onde eu apareço em doubles e em heterônimos diversos, mercê de complexos e de cartazes). Cássio Murtinho parecerá o ÚNICO inventado. Sua presença, sua reação, sua unidade, sua humanidade contraditória, sua filiação dostoivsquiana, suas tiradas a Nietzsche, sua insânia, sua psicose, tudo nele tem característica de símbolo preparado, ora como análise, ora como síntese, muitíssimas vezes como antítese. Aqui, porém, categoricamente declaro e confesso que Cássio Murtinho é o início do personagem inteiro e verídico de quantos há em qualquer e em todos os meus romances. Adri e Jandira, bem como a futura Plurabela, tive e tenho que as deformar e esgarçar de tal modo que sobrepairem nos romances como poesia bremondiana pura, transubstanciando-as em verônicas líricas que enxuguem as minhas vicissitudes reais e espirituais. Eu próprio, quando me transfiro para personagem, burguesmente, ou esnobemente, me deformo por mais que isso irrite o que em mim há de sinceridade exilado no Lord Jim em que me transformei ultimamente. Mas Cássio Murtinho está intacto, real, com a sua força humana e com a sua loucura. Foi isso mesmo que, decerto, o pus em Território Humano para atrapalhar a identidade transfigurada de Adri. Foi, talvez, o único meio que arranjei de tirar Adri do primeiro plano, como em orquestra se tenta anular a beleza e o milagre dum violino com os vieses dum contraponto bárbaro. (Subterfúgios de confissão e ao mesmo tempo de tentativa de desfiguração!)
Era eu ainda estudante de medicina, no Rio, quando, aí por volta de 1915, vim a conhecer João Lins Caldas, um nortista do Rio Grande do Norte com aquelas características mais diédricas possíveis e do nordestino: uma voz aberta, cantante, ora ventríloqua, ora empostação nasal, uma cabeça que parecia a daquele Esopo que Velasquez pintou, cabeça dura, grande, estranha, zangada; e um caráter a toda prova. A "ligação" ou, como se diz hoje, a "tarefa" que nos uniu, foi a Literatura. Circunstanciais diárias eventuais nos foram aproximando, no Garnier, no então Café Belas-Artes, e diante, por exemplo, do Clube de Engenharia, ora sozinhos, ora em rodas. João Lins Caldas optou por mim, entre tantas amizades e conhecimentos, e passou a tecer uma gradual intimidade que era até paradoxal e sem propósito aparente, pois eu era estudante filho de família grã-burguesa da Tijuca, e ele não passava dum pobre revisor de jornais que pagam com "vales". Começou a me ler uns sonetos onde a sintaxe, o léxico e as ideias eram tão extravagante dispostos que só encontrei semelhança num outro louco genial, Sá Carneiro, suicida de Paris. Mas os sonetos de João Lins Caldas, escritos em abas de carteiras de cigarros e em beiradas de jornais, em quantidade incrível (compunha doze, vinte por dia), ele não os declamava. Largava-os para cima de mim, como se ele próprio fugisse de brasas. Recitava-os como quem profere um edito. Ou como quem lança um anátema. Ou como quem esbruga nas unhas roídas um aerólito! E isso, lhe dava sempre. Era seu estado o de transe permanente. Política, safadezas, pseudoliteratos, discursos na Câmara, telegramas da Europa, questões de repartição pública, artigos de descompustura mútua em jornais, a Grande Guerra, tudo o incendiava. Para a humanidade inteira só conhecia ÓDIO. Para mim, só dedicou amor. E a tal ponto que, por fim, transmudou esse amor em ódio mortal.
Era um bárbaro rondando a Acrópole. Um Nietzsche exilado em Sil-Maria vendo em mim Veneza ou a Basílica Ulpia. Autêntico bárbaro mongólico, hirsuto, beirando a genialidade e a loucura. Jamais vi sujeito que tivesse duas vidas para dois fins opostos, como ele. Para o mundo, era um Kirillof; para mim, um Príncipe Muischkin. Odiava o erro, a tramóia, a hipocrisia, a acomodação, a politicalha, o falso valor, o chantagista intelectual, o cavador de situações oficiais; mas, diante de mim, andando comigo, almoçando comigo, me visitando, me ouvindo, me recitando toneladas de versos, tinha a doçura fraternal dum criado bem acolhido. Quando me conheceu, a sua cariátide de citações era Antero de Quental-Augusto dos Anjos. Nisso se apoiava como um molosso vertical em duas muletas. Quem o olhava, a gesticular nas calçadas, a embarafustar por um café a dentro, a sair duma roda como quem foge e não tolera ordinários, só podia ter duas impressões agudas e súbitas: ter ele perdido injustamente uma grande causa judicial, ou estar na aura dum ataque epilético. Eu lhe agravei muito a alma e o corpo sem querer.
Foi o caso que só conhecendo ele Virgílio, Dante e Sheakespeare, teoricamente, eu, sem querer, lhe fui mostrando outros marcos, através de citações: Gêethe, Novalis, Byron, Shelley, Paul Valéry, Gide, Rimbaud, Rilke. Ouvia, iluminava-se, passava a mão boa e leal pela testa, apalpando lesmas de febre que lhe entupiam as veias salientes, pendurava as falanges nos cabelos, torcendo-os como bilros, inflamava-se e dizia, obtemperando:
- Mas eu já disse isso! Eu, sim, eu!!
E Zás! empurrava-me um soneto, uma estrofe, uma brasa um aerólito um chumbo derretido onde aquilo que eu dissera, citando Lessing, ou Rant, ou Fitche, lá vinha, em forma precursora, joãobatisticanamente! E como aquilo lhe foi fazendo mal! Tamanho mal que nos cercou, a mim e a ele, dum arame farpado, em tal recinto não deixando entrar zoilo nenhum! E então, aderiu a mim, dia e noite, na escola, no hospital, na rua, no café, em casa, e até na ausência!
Lá para 1918 me evadi desse campo de concentração onde as carcaças de Pascal, Hoelderlin, João Paulo, Da Vinci, Feurbach, Hugo, Earrês e Claudel fediam entre corvos como as vítimas, agora, dos campos de Belzen; e fui para a França, a Alemanha, a Inglaterra e a Itália, do meu pobre João Lins Caldas, só me lembrando uma vez única, creio que em Toledo, ou em Burgos (que, uma ou outra, se pareciam tanto com ele), e lhe escrevi umas folhas que passou a guardar como se fosse uma lasca da parede ou do teto da Capela Sistina!
Quase quatro anos depois, voltei. Logo topo com ele, de jornais e de chapéu na mão, por uma dessas calçadas do Rio de Janeiro, ele, o João Lins Caldas, ainda e sempre de preto, misantropo, casto, paranóico, as veias salientes na testa, os cabelos lhe servindo de argolas para os dedos e os proparoxítonos, as mãos zurzindo a canalha, os olhos de descendente de holandês procurando no ar, talvez, uma nuvem que se parecesse com Spinosa, ou Erasmo! Que emoção, a dele! E por que não dizer? que emoção a minha! Semanas, meses, e ele a me ler sonetos que me eram de compreensão mais difícil do que qualquer das Elegias de Rilke! E eu me vingando a lhe falar em museus, em telas, em esculturas, em ruínas, em Paris, em Clemond-Ferrand, em Heidelberg, em Roma, em Dresden, em Assis, em Florença, em Giotto, em Cimabue, em Rafael, em Marinetti, em Cocteau, em Van Gogh, em Briand, em Lenin, em Gauguin, em Picasso! E ouvindo, marasmado, João Lins Caldas, a delirar, suspenso, caminhando sobre um tapete mágico!
Casei-me. Fui tendo filhas. Uma, duas, três, quatro. E João Lins Caldas, pobre, sem consentir num emprego público, sem aceitar dinheiro, nem roupa, nem conselhos e nem mesmo uma simples observação a um dado verso, a mandar lá para a minha casa na Tijuca, malas com cadernos de poesias. Malas e malas. Ao cabo de alguns anos, em cima da minha garagem só havia malas de versos de João Lins Caldas. Um dia me disse com uma reserva de estátua mutilada, e com o orgulho duma púrpura que algum mastim rasgasse, que o Hermes Fontes, como já fizera o Gomes Leite, o andava plagiando. Ao dizer isso a boca amarga e o olhar cor de fel se uniram numa expressão que não esqueci.
Mas não voltou jamais a tal assunto, do qual não tirei conclusão alguma. Rente a mim, calado a mim, dia e noite, pela cidade, só aos domingos ia almoçar comigo à Tijuca, levando mais versos, de uma hermenêutica quase que à Rosa-Cruz. Mas, no vestíbulo de minha casa, sobre o lustre Carolean e entre os móveis Chipendale, brincava, como cavalo, de quatro patas no mosaico para que a Luisa-Cândida ou a Rosa-Ermelinda brincassem sobre aquele dorso de Pégaso-Quasímodo.
Mesmo quando eu queria ser planamente homem só, ele, João Lins Caldas, não deixava, pois andava a me provar a sua consangüinidade com André Suarês ou com Brandês, ajuizando o que eu escrevia e lhe mostrava. E provando a sua coaptação ao espírito de gênios, super-pondo frases de Lessing ou de Stuart Miii a versos seus. Até que...
Até que, de repente, passa a entristecer, aquela fornalha como que parada num desvio; e me diz taxativamente de súbito, um dia, que ia embarcar para Bauru, que ia se empregar nos escritórios da E. F. Noroeste do Brasil. Ofereci-lhe o emprego de meu secretário-perpétuo. Ah! Olhou-me de alto a baixo, como Cristo deve ter feito com Judas no jetsemani; despediu-se e... sumiu.
Não soube dele durante anos. Nem mais lhe vi aqueles sonetos que publicava em revistas e em jornais e cuja demora de publicação o punha em brasa, cuidando-se boicotado por tratantes e invejosos. Anos depois, afogueado, com um estranho fulgor nos olhos cor de bile, a boca mais amarga, me surgiu enviesadamente, trazendo na mão já não mais jornais nem o chapéu, mais uma incrível papelada. Todo um processo administrativo. Estava processando, arrasando o diretor da E. F. Noroeste do Brasil. Leu-me folhas e mais folhas de papel-ofício, com requerimentos, arrazoados, o diabo. E me explicou uma trapalhada. Gaguejando, passando a mão pelas veias e pelos cabelos daquela fronte de Esopo de Valesquez. meteu-se dias seguidos, no meu escritório, apossou-se da Remington, levou a matracar, a matracar. E assim continuou. A Revolução de Trinta foi para o espírito dele um fole avivando a chama dum maçarico. Mandava telegramas ao José Américo, ao Presidente Vargas, à Liga das Nações, ao Tribunal de Haia, a ministros do Supremo, a Juízes, a desembargadores, a Ghandhi, a Roosevelt, a Romain Rolland, "estivessem onde estivessem". No Ministério da Viação tinham paciência com ele, mas investia, esbarafustava, descompunha contínuos, agredia amanuenses, tinha um desdém oblíquo para com os oficiais de gabinete. Voltava a mim, lia-me aquela estrumela toda, um grande fogo de ódio e de purificação a lhe por na cabeleira labaredas de insânia. Arrastei-o a médicos, fiz que submetesse a reações de tudo, a regimes, e anuía, como um cordeiro. Mas, no dia seguinte o anho era um leão, uma hiena. E eis que, certa noite, já eu deitado, me batem à porta, na Tijuca, como um rebate de incêndio ou de catástrofe. Era João Lins Caldas. Vieira, conforme disse textual-mente, "matar quem amava". Antes de lhe abrir a porta já eu vira através do cristal a chama de delírio das suas pupilas fraternais transformadas em íris de Oaim.
E, depois, quando passou por mim, entrando, lhe vi o relevo que o revolver (uma colt lhe fazia no bolso traseiro da calça puída. Sentou-se, tornou a dizer (e era tal e qual um Rogoshin, ou um Kirillof! Desgrenhado, suando, as mãos sem parar, a boca torva) ”que precisava matar quem amava. Fiquei firme. Então saiu, fez sinal para dois sujeitos lá fora (dos quais eu não me dera conta e lhe disse que entrassem "houvesse o que houvesse!" Eram dois marçanos que não sei como nem onde descobriu àquelas horas. E ao mesmo tempo vi que três táxis estavam parados no meio-fio da minha calçada na Muda da Tijuca. Com eles (os marçanos) foi para o alto da garagem. estava fechado aquilo. Voltou e em silêncio me fez um sinal de que "fosse abrir". Revistou as malas (mais de doze ou quatorze), verificou se tinham sido "forçadas", meteu uma por uma as chaves, procurando-as com grande confusão de gestos e ruídos; algumas tinham cadeados, outras estavam amarradas com cordas! Dessas então desconfiou lançando-me um olhar que perdoava e que desesperava. Lá foram as malas escadas abaixo, uma por uma, para os três táxis, às tantas da madrugada.
- Que é que há, meu velho? Arranjaste quarto? Vais para fora?
Em respostas, reentrou no vestíbulo, percorreu os retratos da criançada, olhou os móveis, despediu-se de mim, com um silêncio confluente! E, para sempre, foi embora. Aboletou-se no último dos três táxis, os dois carregadores, cada qual num dos demais carros, velando os trastes que lá iam para um desses quartos-mansardas da Rua Acre ou da Rua do Resende, onde ele, João Lins Caldas, desde que viera do Nordeste, vivera em miséria orgulhosa e treda.
- Subi, deitei-me, acendi um cigarro, fiquei pensando, o coração a crescer.
Para onde foi João Lins Caldas? Não sei. Nunca soube direito, por mais que o procurasse e indagasse no Rio e no Norte. Nunca mais o vi. A não ser como personagem dum romance meu. Como me entrara pela vida a dentro, assim como pelo Território Humano, como um Nietzsche sem bigodes e sem Wagner, mas com cento e tantos cadernos de poesia, com toneladas de delírios, com ódio, com amor, com perdão, com santidade, com loucura, e ainda hoje não sei porque o pus como personagem do meu romance. Talvez por ser tão meu amigo e merecer atrapalhar a verídica Adri, também desfigurada propositalmente no romance. Assim como as linhas geométricas da escola eubista marcaram a essência mesma de todo o cromatismo sintético e apaixonado duma bem-amada. Ou como um leão defendendo uma donzela. Ou como a loucura mascarando o amor.
Adri, eternamente ausente, veridicamente morta hoje, não o tendo conhecido senão como personagem talvez agora, lá nas Moradas desse Território Sobre-humano, o ature, e lhe queira bem, como eu que a ambos procuro neste vale que os dois, em certo ponto, transfiguram em patamar dos itinerários que ainda procuro atônito, sem saber o que me oferecem ou o que me negam."
Postado por Fernando Caldas
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